Planeta dos Macacos
Charlton Heston deixou ontem o mundo dos vivos, depois de uma carreira de competência e sucesso no grande ecrã complementada, de uma forma da qual poucas “estrelas” se poderão gabar, com uma participação cívica de monta. Foi, acima de tudo, um lutador pela mais moderna e radical das liberdades – a necessidade de permitir a cada ser humano viver e pensar de forma independente, para além de esquematismos ou conveniências políticas e sociais do momento. A tenacidade com que defendia as suas convicções e a sua forte veia individualista transpiravam nos personagens maiores que a vida que interpretou.
Estava eu lendo várias reacções e artigos sobre a vida e morte desta figura ímpar, quando me aparece no ecrã este obituário. É verdade, antes não tivesse lido. Mas, caído nas areias movediças do lodo, ou se esgravata para sair ou se é engolido de vez. Ainda tentei deixar passar – João, não vale a pena, vozes de burro não chegam ao céu… - mas perante o nível do disparate, a revolta venceu a comodidade do silêncio.
Uma simples busca de cinco minutos no Google e no Youtube permite ao cibernauta curioso que queira saber mais, perceber a coerência das ideias de Heston, a forma como as suas posições sociais e políticas são articuladas e sustentadas em argumentos. Algo que, claramente, o autor do epitáfio acima não se deu ao trabalho de fazer, porventura porque obrigaria a um esforço intelectual um tudo nada superior a traduzir e reciclar notícias sobre rodagens, cartazes e trailers do momento.
Se a falta de curiosidade e ignorância não chocam, a estupidez exercida com um tal grau de altivez não pode deixar de incomodar. Poucas coisas causam mais asco do que ver um rato denegrir a rectidão de um Homem (sim, com H bem grande) ou um cobarde a aproveitar para enxovalhar um morto que mesmo na tumba mexe mais do que ele.
Será que o double-thinking de Orwell já anda por aí? De que outra forma justificar que a inteligência e o argumento passem por imbecilidade e o insulto por heroísmo, como parece acontecer na caixa de comentários do referido post? Ou que o imberbe berrante insulte o activista esforçado? Como explicar que mentiras factuais primárias (a NRA e Heston não deram a vitória a ninguém em 2000 e Heston não mudou de partido “da noite para o dia”) sejam postuladas como verdades intocáveis? Que, cravando um último prego no caixão da decência, um homem – com “h”´s e sabe-se lá mais o quê pequeno – chame fingido ao honesto?
Perante coisas destas, como é que ainda pode haver surpresa perante as lúcidas palavras de José Pacheco Pereira:
“O que se passa é que esse verdadeiro mostruário em linha, feito de mil egos à solta, revela mesmo a nossa pobreza, a nossa rudeza, a falta de independência face aos poderosos, grandes, pequenos e médios, os péssimos hábitos de pensar a falta de estudos e trabalho, de leitura e de "mundo", que caracterizam o nosso "Portugalinho". Nem podia ser de outra maneira. Com a diferença que nos blogues o retrato é mais brutal porque mais arrogante e mais solto, ou pelo anonimato, ou pela completa falta de noção de si próprio de quem, por poder escrever sem edição para os milhões de leitores potenciais da Rede, acha que é crítico de cinema instantâneo, engraçadista brilhante, analista político, escritor genial de aforismos, herói único da denúncia dos males do mundo, e portador de todas as soluções que só não são aplicadas porque os outros, a começar pelo blogue do lado e a acabar no fim do mundo, são todos corruptos, vendidos e tristes.”
As minhas desculpas aos meus colegas de blogue por ocupar tanto espaço com uma questão lateral, pelo menos em primeira análise, à temática deste blogue.
Charlton Heston, descansa em paz.
3 comments:
É assim mesmo, caro João! Charlton Heston foi simplesmente uma colossal montanha granítica de fibra e carisma, como o demonstrou inúmeras vezes ao longo da sua notável carreira. Cabotino? Então o que dizer de certas performances de "monstros" como Sir Laurence Olivier, Marlon Brando, Richard Burton, Peter O´Toole, Al Pacino, Jack Nicholson e mesmo Robert De Niro? Era dos raros actores americanos a conseguir interpretar Shakespeare e a fazê-lo muito bem, como evidenciou diversas vezes no teatro e no Hamlet do Kenneth Branagh. Na curta sequência de 3 minutos em que aparece enfia literalmente no bolso todo o restante elenco do filme, incluindo o mui venerável Sir John Gielgud.
No seu geral, concordo com o post.
Quanto à citação do Pacheco Pereira, e em particular a parte do anonimato, fez-me lembrar o teu colega de post Miguel Galrinho.
E pensar que apesar de 84 anos de história a memória do velho Heston se reserva a um sound bite ligado a armas...
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