31.5.07

Contra o Esquecimento… Sempre



* Trailer de «Always» (Spielberg, 89)

E se…? E se «Always», melodrama dilacerante de Steven Spielberg, fosse um filme não de 1989 mas de 1939? E se estreasse apenas em 2009? Interrogações impossíveis, é verdade. Mas talvez não seja despiciendo pensar nelas por um instante. Porque porventura passa também por elas a compreensão do desprezo com que foi recebido este filme e o esquecimento a que é recorrentemente votado.

«Always» é, pois, um filme (escandalosamente) subvalorizado e, agora se percebe, inevitavelmente deslocado do seu tempo. Ou melhor: um filme que acredita (e que dá ao espectador a hipótese de acreditar) numa hipótese de Cinema sem tempo, profundamente clássico e intimamente moderno. Spielberg mais não tem feito, aliás, ao longo da sua carreira, do que resistir contra o tempo. Contra o esquecimento. Do Cinema, do sonho, da memória.

Um filme sem tempo, pois. Mas um filme sem tempo rejeitado por pessoas do seu tempo. Estranho? Não se pensarmos em pessoas demasiado presas ao seu tempo, imersas em objectos efémeros (portanto, também eles inevitavelmente presos ao seu tempo). Já João Bénard da Costa, poço de sabedoria cinematográfica, declarava há mais de 15 anos, contra a erosão da memória, que «Always» era “seguramente um dos raros filmes estreados em 1990 em que se podia ver cinema”.

«Always» – história de amor, melodrama afectivo, filme de fantasmas, narrativa sobre a perda e a superação (por esta ordem!) – mostra-nos que o Cinema pode ser, de facto, a mais misteriosa das artes. Ou como a simplicidade pode ser povoada por múltiplos milagres! O belíssimo trailer do filme é ritmado, do início ao fim, pela canção «Smoke Gets in Your Eyes» (e não há muitos filmes assim tão ligados a uma música como este…), e nesta opção de marketing mora também, pensamos nós, a hipótese de podermos ver este filme como uma longa melodia visual. Um filme como uma canção. De ontem, de hoje… de sempre. Nunca um título foi tão justo!

30.5.07

Do Outro Lado do Espelho

Uma semana depois do incrivelmente aguardado finale da terceira época de LOST os ecos, deixados pela indomável discussão que efervesceu depois de todas as surpresas reveladas, ainda se fazem ouvir. E tendo em conta que só em inícios de Fevereiro do ano que vem é que terá início a 4ª temporada, a especulação terá todo o tempo para ser cultivada e proliferar. Porque depois do que se viu no que é provavelmente o mais audaz, chocante e inebriante episódio de qualquer série televisiva, ela terá infinitas possibilidades. Tal como o título - homónimo do conto de Lewis Carroll acerca do novo olhar de Alice sob o País das Maravilhas - indica, nada será igual depois disto.

No entanto não revelarei aqui qualquer segredo ou desenvolvimento deixado pela recta final da terceira época que teve agora o seu desfecho. A última vez que deambulei sobre LOST aconteceu pouco depois da primeira época ter terminado, quando os sobreviventes do voo 815 da Oceanic Airlines se preparavam para viver a primeira grande viragem e descer pela misteriosa escotilha que delineou o primeiro ano da série. Olhando para essa altura reparamos o quão simples e quase utópica era. Apesar de todas as peripécias, enigmas e perigos mortais, a sobrevivência era ainda a única preocupação e a defesa imperativa, para mais tarde atingirem a meta: abandonar a Ilha.

Muito mudou desde então: essa inocência foi corrompida pela verdade que lentamente se tem vindo a desvendar. Não na sua plenitude claro, mas cada vislumbre parece mais funesto e pesado. Demasiadas vidas foram perdidas ou roubadas e a esperança abalada e enfraquecida. A escotilha original já não existe, Os Outros não são quem se julgava serem... as apostas são elevadas a cada episódio e o finale o primeiro estrondoso culminar de três anos – na ilha cerca de quatro meses – de perguntas e respostas. Para quem especulou que a série estaria meio “perdida” quando voltou em Outubro passado e depois de seis episódios se ausentou três meses, desde o seu regresso LOST esteve no seu melhor e a derrubar quaisquer expectativas. Não só é esta terceira época a sua mais emotiva, ousada e arrebatadora como é também o desenrolar perfeito das mais prodigiosas histórias alguma vez contadas em televisão. E como foi recentemente confirmado essa história terá o seu final derradeiro em 2010 depois de mais três épocas de 16 episódios cada. Agora só resta contá-la.

Porque por muitas mutações que LOST tenha sofrido para se reencontrar e progredir, o coração da história continuam a ser os seus habitantes: as personagens. Aquelas (e agora também outras) que conhecemos no pânico do desastre numa praia de uma ilha deserta e inóspita, continuam a ser a força motriz da série, e a sua evolução, individual e colectiva, a mais arrebatadora de todas as aventuras narrativas vividas em televisão, mudando para sempre a maneira como a vivemos, sendo a série pioneira da mudança dos hábitos de visionamentos das massas, cada vez mais adeptas da revolucionária adaptação do meio à Internet.

E a Ilha é cada vez mais a Força transmutadora, o cenário desse constante devir. Nela mora mais a redenção que a perdição, ainda quando a percepção mais racional não seja essa - entra aqui o conflito central desta história: Ciência/Fé. Nela mora também o mais enigmático, cinematográfico, prodigioso e inspirador conto humano do outro lado da ficção. Até 2008 aguardamos o bilhete de volta.

24.5.07

Lonely Souls


Aquele que é possivelmente o momento mais sublime de toda a série Twin Peaks. Episódio realizado por David Lynch e intitulado Lonely Souls, onde se explora a solidão de cada uma das personagens, culminando nestes transcendentes momentos finais. Apesar de rodeados de pessoas, e já sentindo o inexplicável peso da tragédia que acabou de acontecer, o local onde se encontram é habitado não mais do que por simples almas solitárias.

4 Notas sobre «Zodiac»


1) David Fincher é, em doses iguais, um realizador sobrevalorizado e um artesão virtuoso. Se é inegável a sua mestria técnica e narrativa, também parece que o seu Cinema raras vezes atinge a profundidade e relevância que poderia alcançar. Em «Se7en», o seu filme mais perfeito e significativo, Fincher atinge um patamar qualitativo que jamais voltou a contemplar; e se em «The Game», notável jogo existencial, o realizador americano volta a desarmar o espectador, em «Fight Club» (de longe o seu pior filme) estatela-se em absoluto numa patetice sem remissão. «Alien 3» e «Panic Room» parecem-me filmes algo irrelevantes na filmografia do realizador.

2) «Zodiac» surge, neste contexto, como um dos melhores e mais interessantes filmes de Fincher. Trata-se, a meu ver, de uma obra de enorme riqueza dramática, que oferece ao espectador personagens consistentes, um conjunto de camadas temáticas bastante pertinentes e um apuro técnico verdadeiramente invejável. Podemos encontrar aqui todo o virtuosismo de Fincher, quer na forma como movimenta a sua câmara, quer nas soluções visuais que encontra para desenvolver a narrativa. Mas a mestria narrativa do realizador americano surge aqui sobretudo no modo como procura manter-se próximo das suas personagens, em detrimento de uma excessiva estilização e retórica visual.

3) As personagens: «Zodiac» é, antes de mais, um filme em que se sentem permanentemente as marcas humanas deixadas pelas personagens que o povoam. Não são, pois, como sucede frequentemente no moribundo modelo do thriller contemporâneo, meros bonecos que se passeiam pela narrativa para fazer avançar a história e para desvendar os mistérios “habilidosamente” fabricados pelo argumentista. As personagens deste filme são meticulosamente construídas e mesmo os elementos mais secundários surgem insuflados de humanidade. Jake Gyllenhaal (o cartoonista), Robert Downey Jr. (o jornalista) e Mark Ruffalo (o polícia) formam um notável vértice humano que espelha todas as fragilidades e dúvidas de uma caminhada por uma verdade.

4) As camadas temáticas: «Zodiac» narra a história, baseada em factos verídicos, da investigação de uma série de homicídios que assolaram a baía de São Francisco nos anos 70 do século passado. À superfície temos, pois, uma narrativa essencialmente policial: perante uma série de homicídios reivindicados por um serial-killer misterioso, desencadeia-se uma investigação em busca do criminoso. Sucede, no entanto, que as circunstâncias que rodearam estes crimes permitem analisar um conjunto de outras questões, que Fincher expõe, com enorme inteligência e subtileza, em toda a sua complexidade. A busca das três personagens principais (e, digamos, do foco da câmara de Fincher) deixa a determinada altura de ser uma busca policial para passar a ser uma busca pessoal, deixa de ser a busca de um assassino para passar a ser a busca de um reequilíbrio interior. Ao atentar sobretudo nas consequências do crime para os investigadores, ao penetrar nas teias obsessivas por eles criadas, «Zodiac» afirma-se como um filme sobre a amarga inquietude da dúvida, sobre o desassossego interior provocado por uma caminhada sem retorno. E se a natureza da verdade, a ambiguidade dos comportamentos e as relações com os media são também temas amplamente analisados, retém-se sobretudo essa perseguição feita pelas personagens centrais. Uma perseguição que é uma espiral onde o espaço perde identidade e o tempo parece entrar em colapso. Só sobra a obsessão.

21.5.07

"Eu nunca fiz senão sonhar."

Em Big Fish, Tim Burton alterna realidade e ficção, contando a história de um pai às portas da morte que sempre contou as mais loucas aventuras da sua vida e de um filho que procura conhecer o homem que se esconde por detrás das histórias, ao mesmo tempo que este recorda algumas das fantasias que o pai sempre contou e que ainda conta.

No final, mesmo antes da morte do pai e do verdadeiro funeral, é a vez do filho lhe contar a história da sua morte (mas que o pai comenta, sorrindo com as forças que lhe restam, como sendo a história da sua vida). Apesar de todas as diferenças, em ambos os funerais há algo em comum, pouco característico: há mais sorrisos do que lágrimas.

Qual é afinal, o papel do sonho, o objectivo máximo das histórias loucas de Edward Bloom? Talvez seja esse: sorrir de tal forma nos sonhos que, quando volta à realidade, o sorriso vem com ele (ainda que a fantasia lá permaneça), e com os que o rodeiam também. E não há momento mais tocante e que melhor demonstre esse cruzamento do sonho com a vida do que aquelas imagens finais do funeral verdadeiro, em que vemos todos falando entusiasticamente, com sorrisos na cara em vez de lágrimas. De repente, percebemos que estão a contar histórias... as histórias de Edward Bloom.


Afinal, talvez não tenha sido tanto o fundo verdadeiro das suas aventuras que o definiram enquanto ser humano, mas o lado fantástico que lhes acrescentou. Talvez, com todas as viagens que fez (e que foram muitas), as mais verdadeiras tenham sido aquelas que fez dentro de si. E talvez tenha sido aí o lugar mais longínquo até onde viajou, onde se reencontrou, e onde foi finalmente reencontrado.

P.S.: Vem este post a propósito de um revisionamento que é ao mesmo tempo um visionamento, na medida em que foi, desta vez, visto na sua recente edição em blu-ray, com uma magnífica qualidade de imagem (se esquecermos o pormenor do ligeiro desequilibrio da quantidade de grão de cena para cena), que permite apreciar o fabuloso imaginário Burtoniano em todo o seu esplendor.

20.5.07

Criterion em Maio


Este mês, haja dinheiro...Detalhes das edições:
Sansho the Bailiff de Kenji Mizoguchi
Army of Shadows de Jean-Pierre Melville
The Third Man (reedição) de Carol Reed
Vengeance Is Mine de Shohei Imamura

13.5.07

Sob o signo de David Fincher

Enquanto um dos nomes mais marcantes do cinema norte-americano dos anos 90, David Fincher, provocou diversos momentos de ruptura no panorama actual desde a sua insurreição. Proveniente do mundo dos anúncios e vídeos de música, ainda hoje motivo de escárnio, Fincher trouxe com os seus filmes uma abordagem muito peculiar ao processo de exposição de uma obra de cinema chegada de Hollywood. Não há como ignorar o facto de todo o thriller pós-Se7en possuir marcas vestigiais da obra de 1995, por mais antagónico que fosse. Alguns elementos da sua visão sórdida e viscerosa contaminaram o cinema contemporâneo, muitas vezes para o pior, tendo em conta que estas réplicas são, no geral, abomináveis objectos de cinema reciclado. Cresce então um fascínio pela dominante capacidade de Fincher assombrar as narrativas de forma a torná-las mais aptas a serem trespassadas pela luz da concepção. É nos momentos de mais evidente bestialidade e morbidez que residem os reflexos de maior honestidade e audácia da sua obra. E, com a estreia de Zodiac na próxima quinta-feira, é altura de relembrar o soturno rasto deixado por este celebrado (e odiado) realizador nalgumas das suas mais inóspitas imagens.

Alien 3 (1992)

Se7en (1995)

The Game (1997)

Fight Club (1999)

Panic Room (2002)

top 10 2000-2007

Por ordem cronologica, limitando um filme por realizador.

Artificial Intelligence (2001) de Steven Spielberg
Mulholland Dr. (2001) de David Lynch
25th Hour (2002) de Spike Lee
All the Real Girls (2003) de David Gordon Green
Elephant (2003) de Gus Van Sant
Tropical Malady (2004) de Apichatpong Weerasethakul
Million Dollar Baby (2004) de Clint Eastwood
The New World (2005) de Terrence Malick
Juventude em Marcha (2006) de Pedro Costa
I Don't Want to Sleep Alone (2006) de Tsai Ming Liang

11.5.07

Days of Heaven

O paraíso, que existe, mas que só encontramos uma vez. Por Terrence Malick.



8.5.07

TOP10 2000-2007

Seguindo esta iniciativa do Tiago Ribeiro – cinéfilo que os membros do Claquete estimam, sobretudo pela frontalidade dos seus textos e pelo facto de explicitar essencialmente a sua visão sobre os filmes que vê, ao contrário, diga-se, de outros que, em pose ostensivamente didáctica, apostam em textos indistintos e quase confundíveis com os mais básicos livrinhos de cinema –, deixo aqui também aquele que é hoje o meu TOP10 desta década (muito provavelmente mais rica que as duas décadas anteriores), por ordem alfabética e com um auto-imposto limite de um filme por realizador:

«25th Hour» (Lee, 01)

«Almost Famous» (Crowe, 00)

«Artificial Intelligence: AI» (Spielberg, 01)

«The Fountain» (Aronofsky, 06)

«Gangs of New York» (Scorsese, 02)

«INLAND EMPIRE» (Lynch, 06)

«Lost in Translation» (S. Coppola, 03)

«Million Dollar Baby» (Eastwood, 04)

«Moulin Rouge!» (Luhrmann, 01)

«The Village» (Shyamalan, 04)