29.10.06

Reencontrar Brigadoon


Importa chamar a atenção para o recente lançamento no mercado português de DVD de «Brigadoon» (1954), um dos mais esquecidos e injustiçados filmes de Vincente Minnelli. É uma excelente oportunidade para resgatar do esquecimento esse que é um dos maiores musicais de Hollywood.

Brigadoon, a pequena aldeia imaginária escocesa que ganha vida apenas um dia em cada cem anos, constitui um espaço cinematográfico único e irrepetível, onde se cruzam números musicais de verdadeira exaltação da cor, do movimento… e, claro, do amor. Nesse reduto espacial encantado, quase onírico, quase sussurrado, preserva-se a inocência do olhar e o poder aglutinador do sonho.

Minnelli capta esta belíssima fábula (que é também uma intemporal história de amor) num cinemascope exuberante e o eterno Gene Kelly contracena exemplarmente com a deslumbrante Cyd Charisse. «Brigadoon» é um musical de coração cheio. Quem o visita, jamais o esquece.

24.10.06

Lágrimas de Felicidade?


Vale a pena regressar a 1988, sobretudo quando as últimas animações japonesas me têm passado ao lado, em particular as de Hayao Miyazaki, onde não posso deixar de sentir que à perfeição técnica e formal se opõe um conteúdo vazio e disperso, mais preocupado em que as personagens sejam meros símbolos ou metáforas de uma ou outra coisa, do que em explorar o seu lado humano e desenvolver a sua complexidade dramática. Curiosamente, é o que não se passa em Grave of the Fireflies, de Isao Takahata, em que são as personagens (a sua densidade humana e dramática) que definem o mundo que estas habitam, e não o contrário. E é por isso que Grave of the Fireflies é um dos filmes mais tocantes de sempre. É, acima de tudo, um filme que sabe aproximar-se do espectador pela humanidade que atribui às suas personagens, pela genuinidade das suas relações.

E é também importante referir que a primeira coisa que sabemos no filme é que o destino das personagens principais será a morte. Na verdade, a primeira frase do filme é de Seita, dizendo-nos a noite em que morreu... 21 de Setembro de 1945. Em plena Segunda Guerra Mundial, após a morte da mãe, Seita e Setsuko fazem o que podem e o que não podem para sobreviver sozinhos. Porém, a inocência da idade permite-lhes encontrar felicidade do meio do desespero. E é sobretudo daí que vem o impacto de
Grave of the Fireflies: as personagens não têm consciência dos seus destinos; nós, espectadores, temos. Na verdade, diria mesmo que quanto mais felizes são as cenas, mais tocantes, desencantadas e tristes são para o espectador. As lágrimas causadas por esses momentos não são, pois, de felicidade, mas sim por termos consciência da efemeridade dessa felicidade; por termos consciência de que em breve dará lugar à morte.

19.10.06

A Dama-Dragão

Que não haja dúvidas: Meryl Streep domina «O Diabo Veste Prada». Mesmo quando não está em cena, se sente a influência da sua personagem sobre todas as outras, de tal modo conseguiu contrui-la e torná-la real.

O que poderia ser mais uma banalíssima crítica ao mundo da moda, às mulheres de carreira, às escolhas a fazer para realizar os sonhos de cada um (e tão fácil que poderia ter sido!), é antes uma sátira inspirada, e que, a espaços, se sente real - isto por "culpa" de Mery Streep, cuja personagem é verdadeiramente um dragão, sem escrúpulos, em olhar a fins para atingir os seus meios.

No meio disto tudo, Anne Hathaway é o contraponto perfeito. No meio do glamour emanado por Streep, sente-se ali uma certa dose de idealismo, provincianismo e simplicidade, que vai ser muito posto à prova, e que se irá alterar com o passar do tempo, e com o desenvolver das circunstâncias.

E é precisamente no desenvolver das circunstâncias, e na alteração do padrão comportamental de Andy (Anne Hathaway) que se encontra o maior interesse do filme, e também o maior impacto de Miranda (Meryl Streep)... esse impacto que ela consegue ter em todas as alturas - até mesmo quando não está no ecrã, pois temos como certo que tudo quanto Andy faz, o faz para conseguir agradar a Miranda e segurar o seu emprego - e que consegue ser tão variado como possível, com apenas mais um sobrolho franzido, ou um trespassar momentâneo de fraqueza pelo seu olhar...

Só é pena o final. O final típicamente de Hollywood. O final politicamente correcto. O final "feliz" que o público gosta de sentir neste tipo de filmes. Mas que porém não se adapta ao que vinha sendo o rumo das personagens ao longo da duração do filme. Mas uma discussão sobre finais (felizes ou não) ficará decerto para outra ocasião, já que é uma temática que daria para encher várias páginas...

18.10.06

Muito Transe, Pouco Cinema


«Transe», o novo filme de Teresa Villaverde, é um caso flagrante de esbanjamento de recursos e de ideias e um penoso caminho cinematográfico de autodestruição. Na verdade, não é apenas Sónia, a personagem principal, que vai perdendo a sua identidade e dignidade: o próprio filme parece querer acompanhá-la nessa espiral de destruição e acaba por tornar-se num objecto amorfo, quebrado, vago e impenetrável.

Acompanhar este filme torna-se, assim, uma tarefa inglória e desapontante, agudizada não só pelas boas referências que dele tínhamos previamente, mas sobretudo pelas referências que ele dá de si próprio na primeira parte da narrativa (meticulosa, poética, sensorial, rica em referências e em ideias de cinema).

De facto, se o filme começa com interessantes referências ao lendário realizador russo Tarkovsky, numa inteligente simbiose entre a austera realidade e a poesia da natureza em movimento, a verdade é que rapidamente as descarta em detrimento de um discurso miserabilista e deprimente, que confunde profundidade dramática com a sobre-exploração do rosto sacrificial da protagonista.

As opções estilísticas e narrativas da realizadora são bastante discutíveis e à medida que o filme avança mais se torna evidente o fracasso do dispositivo montado. Se, por um lado, estamos perante um filme com preocupações sociais (o drama do tráfico de mulheres numa Europa desumanizada e indistinta), por outro verificamos que o social rapidamente é trocado pelo pessoal e que o realismo se compromete com o calculismo do artificial.

Onde inicialmente existiam ideias e certeira gramática cinematográfica passam a existir planos longuíssimos e impertinentes, redundâncias de vária ordem, processos narrativos herméticos e descompensados, e, sobretudo, uma enorme aridez emocional e a profunda incapacidade de fazer crescer a narrativa em termos dramáticos. No final, francamente mal engendrado, ainda se tenta recuperar o pulsar cinematográfico, com uma óbvia citação de Bergman (de «Persona», pois claro), mas nessa altura já nada pode salvar um filme moribundo e despedaçado.

Excepção à mediocridade geral do filme é Ana Moreira, actriz promissora e de talento latente, que aqui merecia melhor material narrativo. O seu olhar penetrante, a terna composição do seu rosto, a meticulosa encenação dos seus gestos e a enorme força dramática que brilhantemente soube conter fazem dela um verdadeiro porto de abrigo para o espectador. Num ano francamente mediano em termos de interpretações femininas em papéis principais, a sua interpretação em «Transe» é já uma das melhores do ano. Proeza sua, não do filme!

15.10.06

De Palma por dentro e por fora



Brian De Palma sofre de um estranhíssimo estigma, recorrente em quase todos os circuitos cinéfilos que lhe reconhecem uma espécie de astúcia de aluno dedicado e estudioso dos grandes mestres, reduzindo a sua obra a uma colecção de imitações de outras filmografias (tipicamente a de Hitchcock). Tão imitador quanto o foi Scorsese de Powell? Ou, mais recentemente, PT Anderson de Altman? Existe um rigor quase idiossincrático na mise-en-scène de DePalma que o coloca instantaneamente no exterior de qualquer rótulo que lhe queiramos impor; uma forma obsessiva de filmar os corpos como se fossem parte de um perturbante jogo de seduções entre as imagens e o espectador. Existe um diálogo erótico que se esconde nas suas imagens e que nos coloca constantemente na insegurança do nosso próprio papel enquanto espectadores. Na verdade, De Palma é um fascinante experimentalista da nossa relação com as imagens, relembrando, a cada fotograma, que uma imagem pode exigir a sua própria sinopse e impedir que a narrativa de um filme seja a exclusiva proprietária do direito de fazer avançar a história.

Sobre «Black Dahlia». Essa relação com o storytelling visual existe, mais do que nunca, na relação com os olhares das personagens, com as suas tragédias pessoais e a insegurança das suas certezas. Olhando para «Black Dahlia» - durante e depois – é, antes do mais, sentir que De Palma nos conseguiu colocar na errância do seu protagonista, impondo-nos a sua obsessão e a sua impossibilidade de querer controlar o mundo à sua volta. Em boa verdade, existem alturas em «Black Dahlia» que o mundo (a história) nos parece fugir, tanto mais quanto as próprias imagens não parecem querer dizer tudo; parecem, pelo contrário, ocultar a verdade indiscutível da sua identidade.

A única verdade que conhecemos é a morte e a ilusão de a podermos olhar como princípio para conhecermos a vida. A vida de quem? De Elizabeth Short, a enigmática jovem cuja morte nos fôra vedada, mostrando-nos apenas pequenos fragmentos da sua vida sob a forma de screentests que De Palma orienta com a perversidade desconcertante da sua voz. De facto, a invisibilidade da sua voz torna-o uma presença tanto mais perturbante quanto sentimos que ela – Elizabeth Short – parece perder o seu olhar (e a sua vida) numa contracenação com ele – o realizador – devolvendo-nos a nós (espectadores) a cumplicidade perturbante da sua vida (e da morte). Porquê? Porque é bom não esquecer que o olhar dela nos encontra apenas a nós, espectadores da sua vida. É esta ambiguidade visual que torna as imagens de «Black Dahlia» tão fascinantes; quem está a olhar para ela? É o realizador ou somos nós? E ela, para quem olha de forma tão cândida e decidida? Os nossos olhares cruzam-se, por diversas vezes, e a minha ingenuidade descansa ao assistir à interpretação que ela faz do discurso que Vivien Leigh celebrizou no papel de Scarlett O’Hara em «E tudo o Vento Levou». Rapidamente, a minha ingenuidade se perverte e deixa-se tomar pela consciência de estar a olhar para uma candura que já pouco preservava da inocência que lhe parecia pertencer.

E é desta ambiguidade que «Black Dahlia» se constrói. De Palma nunca foi um cineasta literário, isto é, nunca achou que as suas imagens tinham de pertencer a uma lógica literária dos acontecimentos e do mundo. Relembremos o seu filme anterior - «Femme Fatale» - onde o seu formalismo ditava os princípios de um outro mundo, com lógicas exteriores a qualquer vontade fugaz de lhe querermos impor um sentido. «Black Dahlia» preserva esse desejo formal de desafiar as imagens e convenções que guardamos do mundo, mas reserva um olhar próximo aos policiais noir dos anos 40, com De Palma a revisitar esse tempo específico com a experimentação e o risco suficientes para invalidarem a possibilidade de um mero pastiche mais ou menos interessante. Prova, aliás, desse arrojo tem a ver com o casting do filme: Josh Hartnett, cuja aparência limpa e ingénua parece redimi-lo da posição de herói; Hillary Swank que se decompõe laboriosamente no papel da anti-mulher fatal, numa inversão notável de papéis com Scarlett Johnasson – seria uma aposta bem mais segura para a tradicional femme fatale, que acaba aqui por utilizar a sua perversa sensualidade como tragédia inconsciente da sua presença na história. Dito por outras palavras: enquanto se sente em Swank uma invulgar fatalidade na sua presença feminina, Scarlett perverte a imagem da dona de casa bem comportada, baralhando os códigos e as expectativas. Nada no cinema de Brian De Palma é o que parece, nem as suas imagens, nem os códigos que ele tão injustamente é acusado de copiar.

13.10.06

Little Miss Sunshine


Filme menor que a crítica americana recebeu inexplicavelmente como se de uma obra-prima se tratasse, mas ao qual, ainda assim, se pode (e deve) apontar alguns méritos, entre os quais destaco:

1) O elenco é fabuloso e as personagens muito bem interpretadas, o que evita com que estas não sejam apenas caricaturas banais e desinteressantes. A profundidade do argumento é, de facto, muito pouca, preferindo-se a caricatura à complexidade das personagens. Os actores encarregam-se, no entanto, de que essa caricatura não caia nos clichés mais enjoativos do género, o que acaba por proporcionar muitos bons momentos de comédia.

2) Talvez consciente da sua (falta de) profundidade, o filme nunca escolhe ir pelo caminho do drama, o que sem dúvida seria despropositado, dada a falta de densidade das personagens. Apesar de tudo, Little Miss Sunshine tem uma "mensagem familiar" que pretende passar ao espectador. Ou seja, mais um factor que o poderia guiar pelo caminho do drama, o que os argumentistas e realizadores evitam muito bem, não a martelando em cenas dramáticas fora de tom, mas conseguindo transmiti-la através da comédia. Resultado: não deixando de ser superficial, também não tenta voar mais alto do que poderia, mantendo as suas pretensões ao nível da comédia, onde acaba por acertar de forma eficaz.

COMO O CINEMA ERA BELO

São 50 grandes filmes, escolhidos por João Bénard da Costa, e farão parte do importante ciclo denominado «Como o Cinema Era Belo», que a Fundação Calouste Gulbenkian irá acolher a partir de Novembro para comemorar os seus 50 anos.

Todos os filmes serão apresentados no Grande Auditório da Fundação, aos fins-de-semana, entre 4 de Novembro e 18 de Fevereiro, e os bilhetes custarão €2,50.


Segue a lista:

1 – HOW GREEN WAS MY VALLEY (1941), de John Ford
2 – STARS IN MY CROWN (1950), de Jacques Tourneur
3 – E.T – THE EXTRA TERRESTRIAL (1982), de Steven Spielberg
4 – CITIZEN KANE (1941), de Orson Welles
5 – SOME CAME RUNNING (1958), de Vincente Minnelli
6 – SPLENDOR IN THE GRASS (1961), de Elia Kazan
7 – CHIKAMATSU MONOGATARI (1954), de Kenji Mizoguchi
8 – U SAMOGO SINEVO MORIA (1936), de Boris Barnet
9 – ORDET (1955), de Carl Th. Dreyer
10 – THE GHOST AND MRS. MUIR (1947), de Joseph L. Mankiewicz
11 – SPIDER (2003), de David Cronenberg
12 – EYES WIDE SHUT (1999), de Stanley Kubrick
13 – UNBREAKABLE (2000), de M. Night Shyamalan
14 – VAMPIRES (1998), de John Carpenter
15 – BIG FISH (2003), de Tim Burton
16 – JOHNNY GUITAR (1954), de Nicholas Ray
17 – FORTY GUNS (1957), de Samuel Fuller
18 – THE SEARCHERS (1956), de John Ford
19 – CASABLANCA (1942), de Michael Curtiz
20 – MAN HUNT (1941), de Fritz Lang
21 – THE THIN RED LINE (1998), de Terrence Malick
22 – THE RIVER (1951), de Jean Renoir
23 – AU HASARD BALTHAZAR (1966), de Robert Bresson
24 – SICILIA! (1999), de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
25 – THE STRAIGHT STORY (1999), de David Lynch
26 – THE SHOP AROUND THE CORNER (1940), de Ernst Lubitsch
27 – IT’S A WONDERFUL LIFE (1946), de Frank Capra
28 – LEAVE HER TO HEAVEN (1945), de John M. Stahl
29 – GERTRUD (1964), de Carl Th. Dreyer
30 – PERSONA (1966), de Ingmar Bergman
31 – LILITH (1964), de Robert Rossen
32 – LETTER FROM AN UNKOWN WOMAN (1948), de Max Ophuls
33 – VERTIGO (1958), de Alfred Hitchcock
34 – LA CHASSE AUX PAPILLONS (1992), de Otar Losseliani
35 – L’ÂGE D’OR (1930), de Luis Buñuel
36 – ZIR-E DERAKHTANT-E ZEYTUN (1994), de Abbas Kiarostami
37 – VIAGGIO IN ITALIA (1954), de Roberto Rossellini
38 – THE GIRL IN THE RED VELVET SWING (1955), de Richard Fleischer
39 – IL BIDONE (1955), de Federico Fellini
40 – I KNOW WHERE I’M GOING (1945), de M. Powel e E. Pressburger
41 – KAAGAZ KE PHOOL (1959), de Guru Dutt
42 – MOONFLEET (1955), de Fritz Lang
43 – L’ATALANTE (1934), de Jean Vigo
44 – ONLY ANGELS HAVE WINGS (1939), de Howard Hawks
45 – LA RÈGLE DU JEU (1939), de Jean Renoir
46 – THE SCARLET EMPRESS (1934), de Josef von Sternberg
47 – VIVRE SA VIE (1962), de Jean-Luc Godard
48 – SENSO (1954), de Luchino Visconti
49 – IVAN GROZNY (1944-58), de S.M. Eisenstein
50 – THE NEW WORLD (2005), de Terrence Malick

9.10.06

MARIE ANTOINETTE : Primeiras Impressões

Em Outubro chega o esperado e já muito criticado (e também venerado) Marie Antoinette de Sofia Coppola. Quem espera um encore de Lost in Translation pode já deixar para trás essas expectativas. Apesar de usar a mesma linguagem filmica desse clássico moderno - e também de Virgin Suicides - Marie Antoinette é uma obra completamente díspar e mais ousada em diversos níveis. Nota-se desde à partida uma maturação na realização de Coppola e uma capacidade ainda mais apurada de construir todo um espaço único, físico e sentimental a partir de um único frame. As imagens que aqui vemos são sumptuosas, belas, extravagantes, artificiais. Até porque conta-se a história de Marie Antoinette, uma (demasiado) jovem arquiduquesa austríaca que aos 14 anos se casou com Louis XVI. Cinco anos mais tarde era rainha de França. Incapaz de sequer comunicar com o seu novo marido e presa nas teias de costumes antiquados e pomposos de Versailles, Marie Antoinette começa a rebelar-se da única forma que era aceite: gastando ridículas quantidades de dinheiro, nunca tendo noção do seu real valor.


Numa interpretação repleta de pequenos e suaves nuances dramáticos, retratando alguém que assume uma vida de actos supérfluos por não conhecer qualquer alternativa, Kirsten Dunst é magistral neste papel e auxilia Coppola na composição de um retrato atípico e impiedoso não só da corte fútil de Versailles, pautado quase sempre por uma banda sonora moderna inspirada e voraz incluindo um resplandecente momento com “Ceremony” dos New Order em fundo, mas sobretudo na leviandade como mostra uma adolescente, perdida num mundo que desconhece, que foi capaz de levar todo um país à falência sem a real percepção do que existia para além dos palácios. Num tom muito inspirado em Barry Lyndon de Kubrick, o cinismo e superficialidade de Marie Antoinette são apenas breves reflexos de uma era de ouro que atingiu um derradeiro final mais cedo do se esperava. E quando se raspa essa superfície apercebe-se que pouco mais existia escondido.


7.10.06

Mitologia vs Humano

Caro João Ricardo,

Uma vez que aceitaste o meu pequeno desafio de termos um debate frente a frente, vou respeitar também a organização estruturada do teu texto e responder-te a cada ponto, individualmente:

1 – Respondendo ao teu terceiro ponto, devo dizer que tenho alguma dificuldade em rever-me na dialéctica que Shyamalan pretende impor nesta fábula. Curiosamente porque me parece uma dialéctica muito distante da que o cineasta, geralmente, procura. «Lady in the Water» tem, a meu ver, mais fascínio pela mitologia (pela possibilidade de existir um «divino») que pela humanização das pessoas perante essa possibilidade. As próprias personagens parecem-me estar limitadas a uma estranha letargia automatizada de acções e reacções (e disso, também me parece que a personagem de Shyamalan é particularmente reveladora), seja na crença imediata e muito pouco sustentada, como já tinha explicitado no meu texto, da personagem do Giamatti, ou mesmo no esquematismo redundante do argumento, gastando metros de película com um jogo de plataformas. Nesse jogo pretende encontrar-se o grupo certo, a disposição certa das peças, as leituras correctas das mensagens do universo e, de repente, apercebemo-nos que tudo falha, é preciso reconstruir o grupo, reler tudo, etc. E, no meio destes jogos, o humano no filme fica resumido a uma série de peripécias e pensamentos sobre a resolução de puzzles efabulados. Pontualmente, Shyamalan regressa à sua sensibilidade e ao seu fascínio pelas fragilidades dos seus actores (desde a apresentação dos condóminos no início, passando pelos primeiros diálogos entre Cleveland e Story, culminando no belíssimo momento de renascimento). Mas são fragmentos pontuais de uma história muito mais preocupada com a exploração da sua mitologia do que com a reconstrução afectiva e humana que a presença mitológica pode impor ao ser humano. É neste sentido que digo que Shyamalan quer desesperadamente que o espectador acredite na mitologia. Perde demasiado tempo a explicá-la. Não era necessário, bastava colocar-nos na intimidade das suas personagens... uma vez lá, acreditamos no que eles acreditam (e na sua coerência).

2 – Parece-me que estás a fazer uma leitura demasiado minimalista do “porquê”. Eu creio que o porquê existe antes de existir o “o quê”. Porquê? Porque a necessidade de acreditar não tem apenas a ver com o objecto de crença, mas sobretudo com a natureza de sermos humanos. Porque somos humanos, sentimos fascínio pelo desconhecido. A partir daí somos capazes de gerar as nossas próprias crenças... aliás, várias foram as religiões que foram criadas ao longo de séculos. Várias fábulas e mitos saíram da nossa imaginação, da nossa necessidade de darmos uma imagem ao desconhecido. Isto pode parecer a história do ovo e da galinha e, em última instância, pouco interesse teria para a nossa discussão, não fosse tu teres referido que o “porquê” te parecia mais um ponto de chegada e que a questão deveria ser “em quê”. Espero deixar assim a minha posição bem esclarecida.

3 – Bom, a questão do monstro como já te tinha dito na minha resposta, é uma fraca referência para sustentar ou favorecer qualquer processo de convencimento. No limite, isto até era fácil de conseguir, até porque o processo de convencimento não é uma metodologia abstracta e universal; ela depende, necessariamente, do «sujeito a convencer». Spielberg, em «ET» sabia que teria esse problema, por isso a saída mais realista era contar a história apenas com crianças. Em «Encontros Imediatos», não só Spielberg coloca as suas personagens em contacto visual directo com os ovnis como, além disso, imprime nelas uma espécie de convite divino a descobrirem o desconhecido. E é este tipo de trabalho de argumento que faltou a «Lady in the Water». Tu dizes que Shyamalan optou por não mostrar essas imagens. Achas que é um mérito artístico. Eu sou da opinião contrária, foi dessas imagens que senti mais falta. Estava muito mais interessado em ver como as pessoas reagiam à história mirabolante daquela bela menina subaquática, do que propriamente em acompanhar os enigmas das caixas de cereais ou as plataformas que eles vão subindo para resolver o puzzle e reenviar a Story para a sua liberdade. Lembras-te que em «ET» existia também uma metodologia para reenviar o pequeno extraterrestre para a sua casa e envolvia um engenhoso mecanismo telefónico cujo funcionamento o filme nunca explica. Será que interessava? Será que interessava saber a estruturação do grupo de humanos que pode ajudar a Story? Interessa saber que há um curandeiro que atrai borboletas? Ou que existe um intérprete? Parecem-me detalhes algo secundários numa história com ambições dramáticas bem superiores. E, no entanto, esses pormenores parecem consumir grande parte da narrativa.

4 – Quanto à honestidade do Shyamalan, julgo que ele acredita totalmente na história que contou. E o que torna a sua honestidade mais comovente são as melhores intenções do mundo que se escondem nas suas imagens. Creio que falha o compromisso com a verdade sobretudo porque é preciso mais que acreditar numa história para se chegar à complexidade que qualquer verdade encerra. Talvez a mitologia seja elaborada, mas o dispositivo humano que nela se passeia está longe de ter recebido a mesma atenção.

5 – Para sermos precisos as minhas palavras exactas foram: «Eu acredito que tu adores o filme. Eu não acredito no filme.» Que diferença essencialmente conceptual está aqui envolvida? O conceito da diferença. Mais do que isso: acreditarmos nessa diferença. Será que Harry Farber acredita na diferença? Bom, é dificil formularmos hipóteses sobre personagens que apenas parecem pavonear o seu mais popular estereótipo. E o mais desconcertante é que me parece ser das personagens mais interessantes do filme (até porque o resto dos secundários nem estereótipos chegam a ser...). Depois de ver o filme, não sei o que é que terá suscitado o interesse de Shyamalan nesta história. Percebo porquê, mas não consigo perceber em quê. Mas ele seguramente perceberá... e os admiradores do filme também.

abraço,

6.10.06

O Sonho Americano


Apenas um pequeno e desiludido comentário sobre o mais recente filme de Paul Weitz («About a Boy», «In Good Company»), que a crítica americana se encarregou (indirectamente, claro) de afastar das salas portuguesas, com a fraca recepção que teve. Apesar de ter mantido as expectativas, a verdade é que a desilusão é tanto maior quanto mais nos lembramos como Paul Weitz é um realizador/argumentista bastante promissor.

Weitz pretende, em
«American Dreamz», fazer uma crítica político-social à actualidade mundial, em particular aos Estados Unidos, mas este filme falha precisamente onde o anterior, «In Good Company», acertava: na genuinidade das relações humanas. Não nos devemos esquecer que, mesmo que o objectivo seja sobretudo político, um filme não dispensa um desenvolvimento de personagens que aproxime o espectador da mensagem a transmitir. De qualquer forma, mesmo nunca passando do superficial, «American Dreamz» até funciona como divertimento até à parte final, em que Paul Weitz recorre a uma resolução demasiado fácil e apressada, ao mesmo tempo que muda radicalmente de tom sem que exista qualquer densidade dramática para sustentar os seus objectivos.

Acreditar em Quê Porquê

Caro Tiago,

Espero que não tenhas ficado incomodado pelo facto de, no meu texto anterior, me ter referido a ti na terceira pessoa. Sem prejuízo de outros discursos dignos (para mim a dignidade está na correcção), em que comunicamos como se estivéssemos na mesma sala, deixa-me esclarecer-te, como ponto prévio, que me referi a ti na terceira pessoa porque pretendi, “sem prejuízo de um debate mais aprofundado” posterior, estabelecer uma primeira abordagem, numa lógica de explanação de diferenças e não tanto de debate directo. Uma vez iniciado o debate, ainda que mediato, falemos então como se estivéssemos frente a frente.

O teu último texto sobre «Lady in the Water» esclarece algumas questões, mas suscita-me outras tantas. Não querendo alongar-me em demasia, refiro-me, então, a alguns pontos do teu texto.

1 – O “porquê” é um ponto de partida – e eu começo por reconhecer isso: “é um ponto de partida interessante” –, que tem naturalmente a ver com a formulação de hipóteses. Ao contrário do que dizes, não nego a lógica inerente de “princípio-fim”. Bem pelo contrário. O que disse no meu texto é que esse ponto de partida me parece o reflexo de um estado de crença que pouco tem a ver com considerações abstractas sobre a obra. Em todo o caso, tratava-se de uma mera constatação minha, que não encerrava em si qualquer crítica (lógica ou metodológica).

2 – Concordo, de facto, contigo quando referes “que a única forma de sermos honestos com a nossa verdade e com as nossas emoções (seja no cinema, ou em qualquer situação) é pensarmos sempre sobre elas”. Subscrevo, também, a opinião, derivada da anterior, de que é importante racionalizar as nossas emoções, até porque a filosofia segundo a qual as emoções não podem ser racionalizadas sempre me pareceu uma maneira preguiçosa de lidar com os dados que percepcionamos. Eu também racionalizei as minhas emoções. E concluí, diversamente de ti, que esta obra me diz muito.

3 – Ideia com a qual já não concordo é a de que Shyamalan imprimiu uma vontade quase dogmática em colocar o espectador a acreditar na sua fábula. É evidente que o realizador pretende que a sua fábula nos diga algo, mas creio que essa intenção assenta no máximo dos cepticismos (a personagem que Shyamalan interpreta parece-me, nesse sentido, reveladora). E ao contrário do que dizes, parece-me que o papel do espectador não é somente acreditar. Na verdade, o acreditar é apenas um instrumento para reinterpretar ou reponderar o real e nunca um fim em si mesmo. Não me parece, por outro lado, que este filme seja um monólogo; ao contrário, julgo que Shyamalan pretende estabelecer aqui uma dialéctica com o espectador, dando-lhe dados para que este questione o seu papel no mundo (afinal, não é este o paradigma que tem percorrido toda a obra do realizador?). É, nesse sentido, um filme que questiona, com humildade, a capacidade transformadora da Arte, tentando libertar, precisamente, todos os dogmas que perturbam esta potencialidade.

4 – Sustentas depois que a tua questão (acreditar porquê?) antecede a minha (acreditar em quê?). Salvo o devido respeito, discordo. Pelo menos nos termos em que colocas a questão. Tal como defendi no meu texto, é necessário possuir-se previamente uma noção, ainda que inconsciente, sobre o objecto duma crença. É evidente que considerações abstractas de cariz filosófico, moral ou religioso podem ser colocadas previamente, mas mesmo estas acabam por ter origem em algo de empírico. Dito de outro modo: pode colocar-se, em abstracto, a questão: porque razão tem o Homem fé? Porque acredita em algo que não conhece? São questões válidas (ainda que, como se vê, derivem empiricamente duma percepção do real, sendo por isso posteriores à assimilação dalgum objecto de crença). Mas se nos colocamos num plano de análise concreta de uma obra, e se nos questionamos se devemos acreditar em algo que dela emana, então só faz sentido, do ponto de vista lógico, perguntar pelo “porquê” se possuirmos uma noção do “o quê”. Devemos, por isso, perguntar, não só do ponto de vista dialéctico, mas também do ponto de vista dos mecanismos abstractos do pensamento, o seguinte: Acreditas? Em quê? Porquê? Por esta ordem. Como responder se acredito se não sei a que objecto se refere a crença?

5 – A recondução ao real perde sentido, na minha opinião, precisamente quando os códigos do real não conseguem acolher os dados que a ele se pretende reconduzir. Certo que a noção de monstro é demasiado ampla, mas dentro dela cabe certamente a ideia apriorística de “ser irreal”. A personagem de Paul Giamatti tenta, ainda, reconduzir o monstro ao real, mas à medida que outros dados, também “irreais”, o remetem para outro universo, a sua ela vai perdendo a sua fé no real. É um processo complexo, que Shyamalan nos apresenta subtilmente. Por vezes omite esse processo, como digo, mas isso é uma opção de foco artístico, não de negligência narrativa. Aliás, Shyamalan já analisou a fundo essa questão noutros filmes, pretendendo agora, legitimamente, atentar mais concretamente noutras vertentes do mesmo problema.

6 – Finalmente, a questão da incongruência. Mantenho que o teu texto é claro e inteligente. E mantenho, obviamente, intacta a enorme consideração intelectual que tenho por ti. Nunca foi isso que esteve em causa, como bem sabes. O que pretendi acentuar foi a fragilidade da tua argumentação neste ponto, o que não implica que o texto, na sua globalidade, deixe de ser inteligente e claro. Acentuei esta questão sobretudo porque me pareceu algo radical a tua afirmação de que o filme falha rotundamente o seu compromisso com a verdade. Isto dito assim, desta forma tão peremptória, pareceu-me prejudicar um pouco a ideia de que a obra era honesta. Porque, de facto, quando não se acredita nas capacidades do Homem e ao mesmo tempo se conta uma história em que o que está em causa é, precisamente, o próprio papel do Homem, é a honestidade que acaba também por ficar comprometida. Admito que seja um ponto em que as limitações do diálogo indirecto se acentuam, e que, no fundo, estejamos os dois a dizer a mesma coisa com formulações diversas…

7 – Não me parece contraditório que eu acredite na obra e tu não. Nem que a democracia tenha, sob este ponto de vista, qualquer contrariedade. Temos opiniões bem diferentes sobre este filme, mas nenhum de nós pretende converter o outro. Encontramo-nos apenas para trocar ideias e acentuar a subjectividade da Arte, não para encontrar no outro a confirmação das nossas verdades. Mas na democracia moram também opiniões contrárias. Como as de Harry Farber. Ou será que ele também não existe?

Um abraço

5.10.06

Dália Negra


Nesta nova adaptação para cinema de um policial de James Ellroy, depois de L.A. Confidential, Brian de Palma explora o brutal assassinato de Elizabeth Short, uma aspirante a estrela de Hollywood que é encontrada na berma de uma estrada eviscerada, decepada a meio e com um corte profundo de orelha a orelha. Mas tudo começa com Bucky Bleichert e o seu parceiro Lee Blanchard, dois amigos e antigos lutadores de boxe, que depois de uma última luta (ou golpe político publicitário) são promovidos no posto e tornam-se num dos pilares da investigação criminal de Los Angeles. Tudo parece idílico durante uns tempos, e aqui De Palma é extremamente leal ao género policial dos anos 30 e 40 com todas as suas nuances dramáticas e peculiaridades, os jantares e festas com a namorada de Lee, Kay Lake, a popularidade na esquadra e na imprensa... até o nome de Short inundar os jornais.


A partir deste momento tudo muda e The Black Dahlia torna-se numa cruel e intensa espiral de obsessão, que se espelha a nível estilístico, criando repentinas mas alucinantes mudanças de ambiência, viajando do clássico noir à insanidade total, com apontamentos de comicidade extrema a contrastar com a por vezes horrífica parada de violência. A única constante é a realização particularmente inspirada de Brian De Palma, quase um expatriado de Hollywood (este filme, como é normal, teve críticas horrendas no seu país natal), mostra um virtuosismo invejável, não só do ponto de vista técnico, onde se mostra no topo de forma com planos sobrepostos e sequências exuberantes, mas na própria forma como vai narrando este conto de forma tão desmesurada e plena de fulgor.

Josh Harnett é um protagonista mais que capaz e aqui encontra facilmente o seu papel mais marcante em cinema enquanto Hilary Swank interpreta magnificamente uma misteriosa femme fatale libidinosa e Scarlett Johansson invoca com pompa e sumptuosidade o ícone clássico de starlet hollywoodiana. Apesar de uns breves instantes de indecisão narrativa, The Black Dahlia é uma ousada, sensual e ambígua reinvenção do género noir ala De Palma, com uma trama sempre aliciante e com um desfecho brilhante que, no seu delicioso excesso, é cinematograficamente majestosa.



4.10.06

A religião, os dogmas e o cinema.

Caro João Ricardo,

Espero que não fiques incomodado por te dirigir esta minha resposta na primeira pessoa. Sem prejuízo por outros discursos dignos que implicam necessariamente comunicar com os formalismos adequados (alguns desses discursos tu conheces bem da tua área profissional), creio que, tanto este espaço como a relação de amizade que temos, nos permitem ultrapassar essa distância profissional e comunicarmos como se, de facto, estivéssemos os dois na mesma sala. Antes de mais, deixa-me relembrar-te que a minha questão sobre o porquê de acreditarmos tem a ver com uma abstracção necessária da minha parte (é bom não esquecer que a abstracção tem, em última análise, a ver com a formulação de hipóteses). É uma expressão que norteia a filosofia há vários séculos e tem sempre a ver com o questionamento inesgotável da realidade que recebemos. A capacidade de perguntarmos sempre “porquê?” permite-nos partir sempre de um princípio (a pergunta), para chegarmos então a um fim (a resposta... que em boa verdade, poderá dar origem a nova(s) pergunta(s) e por aí fora), ao contrário do que defendes no teu texto, mas seguramente serás capaz de concretizar. De facto, eu não acreditei. Tu acreditaste. Ambos partilhamos o mesmo ponto de partida: porquê?

Porquê a necessidade de perguntarmos porquê? (asseguro-te que, novamente, pretendo com esta questão colocar-me num ponto de partida para te clarificar a minha posição) Porque, de facto, parece-me (e sei que partilhas da minha opinião) que a única forma de sermos honestos com a nossa verdade e com as nossas emoções (seja no cinema, ou em qualquer situação) é pensarmos sempre sobre elas. Interrogarmos as nossas lágrimas e os nossos sorrisos permite-nos aprender a lidar com a nossa própria complexidade. E em «Lady in the Water» essa necessidade de racionalizar (esta palavra é tão mal amada...) pareceu-me tanto mais fundamental quanto me apercebi que estava a ver um filme que tanta coisa parecia bater certo (a realização era fascinante, a entrega dos actores soberba e todo fascínio pelo fantástico enquadrava-se numa lógica que, pessoalmente, sempre me foi muito próxima) e, no entanto, a minha distância em relação ao filme aumentava drasticamente a cada fotograma. Porquê? Por uma série de razões que enunciei no meu texto e que, como compreenderás, não irei reproduzir. Em boa verdade, o caso de «Lady in the Water» parece-me evidente de uma vontade quase dogmática do autor em colocar o espectador a acreditar na sua fábula e, também por isso, torna-se mais fundamental do que nunca interrogarmo-nos sobre o seu dogma.


«O que significa, afinal, acreditar numa fábula?» O mesmo, claro, que acreditar em qualquer história. O caso deste filme de Shyamalan parece-me apenas mais gritante por consequência dogmática da sua relação com o fantástico, lidando com ele como se se tratasse de uma religião previamente instituída, em vez de uma realidade a construir (com todos os cuidados narrativos que lhe estariam subjacentes), reduzindo o fantástico (e o divino) a um monólogo dogmático e o espectador a um crente inquestionável da sua fé. De facto, é essa “arrogância” que me distancia do filme; isto é, pensar que o único papel do espectador é acreditar... porque todos no filme parecem fazê-lo. Perguntas se o facto de acreditarmos, ou não, tem a ver com as implicações morais da história. Em boa verdade, creio que a moral depende sempre de opções complexas... no olhar, no sentir, na forma de contarmos uma história. A moral de «Lady in the Water» lembra-me um pouco aqueles contos soltos da Bíblia (o capítulo do Adão e Eva, por exemplo) que se ensinam na catequese aos miúdos e que qualquer adulto responsável sabe que a sua crença no divino e no espiritual não se constrói (nem depende) deles. A construção da fé tem sempre a ver com algo mais que uma «punchline» moral; tem a ver necessariamente com a nossa disponibilidade para questionarmos a nossa relação com o desconhecido. Dito por outras palavras: acreditar porquê? Tu propões uma alternativa: acreditar em quê? Em boa verdade, parece-me que a minha questão é anterior à tua. O porquê é necessariamente abstracto e, como explicitei acima, é a base de qualquer sentimento humano. Por natureza, como sabemos, o ser humano tem tendência para precisar de acreditar no que desconhece para criar um sentido para o seu mundo. Agora, em que é que escolhemos acreditar, é uma interrogação válida, mas posterior (a meio caminho entre o ponto de partida e o de chegada, provavelmente).


«(...) à medida que essa recondução ao real perde sentido que se começa a acreditar em algo para além do real.» Faz sentido, passo a redundância, perguntar então quando é que essa recondução perde sentido. No teu texto fazes esta afirmação com convicção mas não a sustentas. Em vez disso, integras na tua argumentação uma justificação que me parece deslocada: «até porque quando se é perseguido por um monstro, se deve questionar imediatamente o real.» É bom não esquecer que o conceito de monstro me parece muito vago (sobretudo para a primeira imagem que nos é mostrada) para questionarmos o que quer que seja (em última análise, é uma fraca referência para nos colocar de imediato no lado da fé que Shyamalan tanto pretende). De facto, pelo mundo fora não faltam situações de crenças provocadas por aparições e imagens que só as pessoas podem explicar (muitas delas, de facto, são pouco interessantes e, nesse sentido, não dariam uma grande história para um filme). Repara, não coloco nada contra a mitologia em si, apenas à forma como é tão pouco trabalhada a sua integração na realidade do espectador. Tudo, em última análise, depende de um contexto, mas esse contexto tem de ser construído! Nenhum filme se pode arrogar de ter o seu próprio contexto apenas porque habita num determinado género de ficção.

Remeto-te, por breves instantes, para uma conversa que tivemos em privado no msn, onde discutíamos este filme por comparação com o «ET». Apesar de ambos partilharmos da conclusão que são experiências absolutamente distintas, é preciso perceber que o Spielberg tem uma abordagem radicalmente oposta à de Shyamalan. Repara, para Spielberg o lugar de origem do ET não interessa; interessa sim, o lugar afectivo que ele veio preencher. A determinada altura, as próprias crianças debatem o seu lugar de origem (a sua casa que, como viríamos a aprender com o filme, tem pouco de geográfico ou mitológico), sendo que a personagem da pequenina Drew Barrymore até pondera ele ser um animal qualquer. A mitologia de facto era pouco relevante, o que interessava era assistirmos ao preenchimento e mudança real e visível das pessoas tocadas por aquele ser. Em «Lady in the Water» não me parece existir essa preocupação pelas personagens. Parece-me que as personagens existem numa espécie de espectáculo de marionetas, com uma presença meramente simbólica e serviçal em função de uma denúncia moral que Shyamalan pretende impor. O argumento que apresentas do filme escolher não mostrar o processo de convencimento das personagens é, para mim, uma demérito enorme da construção narrativa do filme e do seu imaginário. É que essas imagens que faltam, são precisamente as que mais interessavam: são as reacções humanas e afectivas das pessoas (que, pessoalmente, me interessam mais do que saber o que é que eles conseguem ler nas palavras cruzadas de um jornal ou numa caixa de cereais).

Para terminar, dizes que cometi uma incongruência ao referir a honestidade do filme, ao mesmo tempo que implico que Shyamalan não terá acreditado nas suas personagens e na sua história. Parece-me desconcertante teres concluído esse pensamento, depois de teres caracterizado o meu texto como claro e inteligente. Claramente, inteligência é coisa que nunca poderia habitar num texto com incoerências desse género. Esperando então continuar a merecer a tua estima intelectual, deixa-me clarificar a situação. Logicamente que Shyamalan acredita de forma convicta no imaginário que está a contar. Mas as palavras formam-se também de conotações e denotações e eu acho que, no limite, ele não acreditou nas capacidades humanas das suas personagens. Acredita, sem dúvida, no seu papel e na sua função para a história, mas sem a crença humana que lhe reconhecíamos de outros filmes. Isso faz dele menos honesto? Penso que não. Menos criativo e artístico talvez... Eu acredito que tu adores o filme. Mas eu não acredito no filme. Parece contraditório? Talvez, estamos cá para lidar com as contrariedades da democracia.


Abraço

3.10.06

Acreditar em quê?

Tiago Pimentel expôs em baixo, com a clareza e a inteligência que lhe reconhecemos, as enormes reticências que tem em relação a «Lady in the Water», a mais recente obra-prima de M. Night Shyamalan.

Sem prejuízo de um debate mais aprofundado sobre o assunto, deixo aqui alguns tópicos de “resposta” (as aspas pretendem acentuar a ideia de que não há verdadeiramente uma resposta a uma opinião, mas apenas a introdução de argumentos que sustentem uma visão diversa sobre a mesma matéria cinematográfica).

A questão nuclear que o Tiago coloca no seu texto – bem presente, aliás, no título do mesmo – prende-se com as razões que levam (a nós e às personagens) a acreditar. É um ponto de partida interessante, embora no presente caso me pareça, inevitavelmente, o reflexo de um ponto de chegada. Ou, dito de outro modo: a interrogação que o Tiago coloca não me parece verdadeiramente um ponto de partida, mas antes a tentativa de justificação de um outro dado, com o qual apenas ele pode lidar: ele não acreditou!

Mas importa ir um pouco mais longe e, antes de perguntar pelo “porquê”, indagar sobre o “quê”. Ou seja, perguntar: “acreditar em quê?” em vez de “acreditar porquê?”. Não se trata de um mero jogo de palavras, mas sim de lançar as bases para uma análise aprofundada da obra. Porque, de facto, antes de nos questionarmos sobre se acreditamos em algo devemos saber em que acreditar, para onde dirigir a nossa fé. É, assim, legítima a questão: quando o Tiago se interroga sobre se devemos acreditar ou se nos são dadas razões para acreditar, refere-se concretamente a quê? A resposta que se retira do texto – acreditar na fábula que Shyamalan nos conta – só aparentemente é satisfatória: o que significa, afinal, acreditar numa fábula? É acreditar que é real? É acreditar que pode ser real? Ou é, ao invés, acreditar nas implicações morais e/ou simbólicas que dela derivam? Ou será, ainda, acreditar que as personagens acreditam ou que naquele contexto podem acreditar?

Bem se percebe que por trás da simples interrogação “acreditar porquê?” mora uma complexidade que não se compatibiliza com respostas mais ou menos esquemáticas. A interrogação “acreditar porquê?”, que norteia todo o texto do Tiago, surge, desta forma, destituída das bases necessárias para que seja verdadeiramente respondida. É, bem se percebe, o tal efeito de reflexo que deriva de um afastamento subjectivo da obra.

Passemos, então, às personagens. Porque para o Tiago parece ser inverosímil (ou, pelo menos, negligentemente explicitado) que aquelas personagens acreditem que uma narfa lhes habita o condomínio. Ora, esta ideia – que é uma ideia fundamental no texto – é que me parece pouco sustentada, quando não mesmo adulterada em detrimento de um conjunto de conclusões redutoras que não têm em conta a enorme complexidade dramática da obra, bem como o seu tempo narrativo.

Exemplo dessa adulteração está nesta interrogação do Tiago: “Porque é que a personagem de Paul Giamatti acredita imediatamente que ela é uma narfa que foge de uns monstros que se escondem na relva e parte em busca instantaneamente de um alegado escritor que ela procura?”. Ora, quem já olhou com atenção para o filme sabe perfeitamente que este dado, que o Tiago parece dar como objectivo, está longe daquilo que as imagens nos mostram. De lado nenhum me parece ser lícito retirar que a personagem de Paul Giamatti acredita imediatamente que tem uma narfa em casa. Bem pelo contrário. O que vemos é todo um processo de convencimento e nunca uma conversão imediata. Aliás, ele começa por reconduzir, muito naturalmente, ao real a narfa e todos os dados disponíveis sobre ela: toma-a a ela como uma miúda e o “blue world” como um apartamento ou condomínio. É à medida que essa recondução ao real perde sentido que se começa a acreditar em algo para além do real (ou, se se preferir, noutro real). Esta evolução é perfeitamente lógica no contexto da fábula e é plenamente sustentada do ponto de vista dramático. Ilógico e pouco produtivo seria prolongar (ou explicitar) as dúvidas, até porque quando se é perseguido por um monstro, se deve questionar imediatamente o real (e note-se que Shyamalan, numa inteligentíssima elipse, corta do plano da porta a fechar-se para um outro plano, já de dia, em que se procuram vestígios do “animal” que o havia perseguido na noite anterior).

Em todo o caso, parece-me importante sublinhar que acreditar em algo é sempre um acto de fé. E que um acto de fé, precisamente por ser de fé, não se compadece com a ideia de processo de aprendizagem característica do saber. Nesse sentido, mesmo que a personagem de Paul Giamatti acreditasse imediatamente que estava perante uma narfa, em nada sairia abalada a lógica inerente à crença. Não faltam casos por esse mundo fora em que uma “aparição” convoca imediatamente uma crença.

E as restantes personagens da história? Bom, quanto a essas a questão parece-me mais simples: Shyamalan optou por não filmar expressamente a reacção imediata dos habitantes do condomínio à história de Story, que a personagem de Paul Giamatti lhes ia contanto. Em todo o caso, aqui a lógica é outra: trata-se, numa primeira fase, duma crença que surge mediada por um terceiro – a personagem de Paul Giamatti –, pelo que será pertinente perguntar se os restantes habitantes não acreditarão também porque a personagem de Paul Giamatti acredita…

Sem prejuízo de outras questões suscitadas pelo Tiago, parece-me ainda pertinente atentar na palavra honestidade, que o Tiago utiliza por diversas vezes. Reconhecendo que habita em «Lady in the Water» uma enorme honestidade, o Tiago contrapõe depois uma ideia de verdade. Concordo que são duas expressões distintas. Mas parece-me algo contraditório dizer-se que Shyamalan é genuinamente honesto a contar esta história e ao mesmo tempo invocar que falha o compromisso da verdade por não acreditar nas suas personagens e na história que conta: se se conta algo em que não se acredita não se é honesto. Pela minha parte, creio que Shyamalan acredita profundamente na sua história e nas suas personagens. E o que nos mostra é, precisamente, o seu olhar, em toda a sua complexidade: apresenta-nos a sua verdade! Uma verdade bela e inspiradora.

Acreditar porquê?

Não é preciso um grande esforço de memória (a sua curta filmografia não obriga a tanto) para percebermos que M. Night Shyamalan é um viajante das crenças humanas, concretamente da dialéctica entre a fé e a religião. Apesar das conotações divinas que a temática possa convocar, só por duas vezes (em «Sinais» e em «Wide Awake») Shyamalan colocou Deus no centro dos desequilíbrios afectivos e familiares dos seus heróis. Apesar da temática tipicamente melodramática, Shyamalan já não pertence à herança do cinema clássico americano; o seu olhar e a sua sensibilidade ajudam a experimentar um novo formalismo e, por consequência cinematográfica e dramática, uma nova relação com o fantástico.

Neste contexto, surge «Lady in the Water», a última ficção do cineasta indiano com uma desconcertante relação com o fantástico, reduzindo-o (pela primeira vez na sua carreira) a um conjunto de «regras de jogo», consumindo gande parte do argumento em ilustrações esquemáticas e verbosas para integrar o espectador no imaginário, em vez de criar uma consistência dramática que menorizasse a imensa negligência pelas verosimilhanças do real (onde, apesar de tudo, o filme pretende habitar). Interessa, portanto, colocar uma interrogação fundamental: acreditar porquê? Importa, antes do mais, questionar a religiosidade das imagens para além dos seus próprios dogmas, sem esquecer que a ficção é sempre uma possibilidade e nunca uma realidade inquestionável.

Que razões nos dá, então, Shyamalan para escolhermos acreditar na sua fábula? Acreditamos porque as personagens acreditam? Acreditamos porque as imagens são sinceras? E se isto for verdade, porque é que as personagens acreditam? Tudo isto são interrogações que me parecem nucleares numa obra de ficção que pretende instalar-nos num imaginário completamente novo, com as suas próprias regras e criar o seu próprio estatuto moral. No entanto, Shyamalan parece ignorar a necessidade de colocar este tipo de questões no seu filme. Parte do princípio que a honestidade das suas imagens e das suas pretensões seriam suficientes para converter qualquer um, mas a verdade é que isto me parece menos um mérito artístico e mais negligência narrativa.

(...)

Ler o artigo na íntegra em:

1.10.06

Serpentes ou lesmas?



Esta semana estreou em Portugal o hiper-mediatizado Snakes on a Plane, filme que tanto deu que falar antes mesmo de estar concluido devido ao inesperado êxtase de uma comunidade cibernáutica ansiosa por ver as suas fantasias com ofídios venenosos registadas para sempre num filme memórável. Mas a mordidela virou-se contra a serpente: longe de ser memorável (embora o culto, esse sim, esteja garantido), Snakes... é um filme deslumbrado pelo seu conceito tão absurdo quanto potencialmente eficaz, mas que carrega em demasia o efeito cartoonesco das personagens e situações, forçando o burlesco quando ele deveria brotar naturalmente da acção. O que não impede que o filme não resulte por vezes, conseguindo a espaços ter uma notável tensão cómica e um ritmo delirante e imaginativo, infelizmente não acompanhados por um suspense muito desinspirado que culmina num desapontante final que, a bem dizer, quase não existe. Claro que talvez fosse impossível exigir essa aliança eficaz a um filme desta natureza... Ou talvez não!
Desviemos o olhar para Slither, obra de 2006 ainda inédita por cá, apesar de em tempos ter estado prevista a sua estreia em sala sob o (aborrecido) título "Os Novos Invasores", mas que já está contudo disponível em boas edições DVD em vários países. Em poucas palavras, tudo o que em Snakes... falha resulta aqui quase na totalidade, conseguindo o realizador e argumentista James Gunn criar um verdadeiro série B, no espírito dos melhores do género, sem nunca expor a sua obra a um ridículo desnecessário. O argumento é anoréctico, como aliás se exigia: lesmas espaciais caem numa vila do Sul dos EUA por via de um meteorito e cedo reiniciam o seu peculiar (e asqueroso) ciclo de vida, reunindo-se um grupo de personagens na luta pela sobrevivência e eliminação da catástrofe. Nada de novo, portanto...



Mas tudo se conjuga eficazmente, pela economia do argumento, pela realização, pelos efeitos especiais orgânicos, por uma extraordinária capacidade de visualização e pela demente imaginação de todo o conceito. Gunn, na ressaca da sua muito bem sucedida reimaginação do clássico Dawn of the Dead, presta aqui homenagem aos grandes filmes do género, da trilogia zombie de Romero a Alien, de Invasion of the Body Snatchers a The Fly, nunca pretendendo atingir altos níveis de complexidade temática mas antes um emocionante entretenimento de horror old school, que tanto brilha no seu excesso de vísceras e corpos deformados como na criação de eficazes momentos de suspense e humor de situação (magnífica, nesse sentido, a cena em plano subjectivo na banheira). No elenco, atenção a Michael Rooker, numa "deliciosa" composição (ou decomposição, depende do ponto de vista!) que em muito faz lembrar o redneck de Vincent d'Onofrio em Men in Black. Apenas um ponto negativo que lamentavelmente aproxima Slither de Snakes...: o sub-aproveitamento das capacidades cómicas dos seus actores principais, no último caso Samuel L. Jackson, no primeiro o brilhante Nathan Fillion, o capitão Mal de Serenity e Firefly. Este, se tem dois ou três momentos hilariantes e continua a fazer rir com a serenidade da sua expressão perante o desenrolar dos acontecimentos, na maior parte do tempo é apenas um herói de acção quando se anunciava um grande herói cómico de acção; o comic relief é em grande parte proporcionado por Gregg Henry, actor fétiche de De Palma, num mayor rabujento que ganha a Samuel L. Jackson no uso inspirado do calão.
Em suma, se as serpentes vão ser as mais faladas no próximo balanço do terror cinematográfico, são para já as lesmas a ocupar o lugar de estrelas mais horripilantemente fascinantes a rastejar em película este ano.