6.3.10

Alice Já Não Mora Aqui...


Tim Burton é, hoje em dia, mais popular que nunca. Aquele rebelde que edificava estranhos mundos e histórias que só eram apreciados e aclamados por alguns é, desde Big Fish, o mais recorrentemente mencionado cineasta na praça pública. Basta olhar para os números das bilheteiras para este fim-de-semana nos Estados Unidos e também no nosso país para perceber que o toque Burton passou de um pequeno fenómeno a uma marca globalizada. Mas se há realizadores que sabem gerir e simultaneamente a arte e o êxito – basta olharmos para a carreira de Steven Spielberg – há outros que parecem perder o Norte e aquilo que os tornou singulares e tão prezados. Tim Burton parece estar a chegar a um ponto em que tem de se radicalizar a si próprio ou arrisca ver o seu legado acabar muitíssimo mais cedo do que previsto.

Alice in Wonderland é uma adaptação livre dos dois livros de Lewis Carroll, uma história surrealista e encantatória sobre uma menina que se refugia num mundo de maravilhas e alguns horrores, repleta de personagens riquíssimas e bizarras que também elas têm muito para contar. Um onirismo transcendente como significante mecanismo de maturação pessoal e psicológico. Agora vemos uma Alice mais velha, sem memória do vivenciou em criança, preparada para casar mas novamente segue o Coelho Branco e entra neste universo que ela julga agora ter construído. Mas tudo parece diferente.

E é-o. É quase impossível descobrir o mundo fantástico e alucinado de Carroll aqui, numa tentativa declarada de Tim Burton de torná-lo mais identificável e acessível. Para trás fica a alma do texto original e da sua própria marca autoral enquanto realizador. Este universo é completamente indistinto, seguindo a fórmula já cansada dos filmes de fantasia pós-Senhor dos Anéis. Para alguém que de raiz criava cosmos inteiros de demência gótica, a dimensão visual deste filme é tão densa ou peculiar quanto tudo o que já se viu nas Crónicas de Nárnia e seus derivados.

Desta forma, e pelo argumento absolutamente inconsequente que traça, trai todas as personagens do conto de onde foi beber inspiração, tirando-lhes toda a vida e reduzindo-as a meros peões serviçais de um enredo patético e incongruente. É logo de notar que o maior protagonismo deste filme é dado, não à sua personagem principal, interpretada por uma Mia Wasikowska com potencial aqui desperdiçado, mas a Johnny Depp no papel de Chapeleiro Louco. Depp, actor exímio que mostrou recentemente uma grande interpretação em Public Enemies, parece agora condenar-se a repetir variações da mesma caricatura desinspirada e sonolenta com aquele já que foi o seu maior aliado. A própria Helena Bonham Carter, a única que mostra alguma capacidade de transfiguração, cedo se cansa do seu retrato vazio.

Tudo aqui é tristemente inócuo e desprovido de qualquer significado narrativo ou meramente visual. No final tudo se resume a uma batalha igual a todas as outras, sem provocar qualquer mudança em nenhum dos seus intervenientes, Alice incluída. Esta passagem pelo buraco de coelho deixou-a exactamente igual a como entrou, ainda que o final de inspiração desonesta queira fazer crer em contrário. E este filme de Tim Burton é igualmente esquecível, incapaz de conjurar uma imagem ou momento que perdurem para além do final do visionamento. Algo que se está a tornar demasiado expectável no percurso do realizador. Mas para quem afirma que em Alice in Wonderland vemos o cineasta de forma automatizada e desinteressada, tal não podia ser menos verdade: Tim Burton não está aqui de todo.

NOTA: Evitar a projecção 3D a todo o custo. É muito fácil perceber que de facto não foi concebido de raiz para ser visto desta forma, reduzindo-se a um trabalho de pós-pós-produção preguiçoso e ganancioso.

2.3.10

John Ford, o poeta-pintor






* «Drums Along the Mohawk» (1939)

25.2.10

O Horror do Esquecimento



«Pensarei nesta história como o horror do esquecimento» (in «Hiroshima Mon Amour»)

9.2.10

2009 - João Pedro Jorge

Mais uma vez, Clint Eastwood matou a
concorrência com duas obras-primas maiores


Estreias em sala em 2009

1- Gran Torino Clint Eastwood
2- Changeling Clint Eastwood
3- Inglourious Basterds Quentin Tarantino
4- Public Enemies Michael Mann
5- Two Lovers
James Gray
6- The Wrestler Darren Aronofsky
7- Aruitemo aruitemo [Still Walking] Hirokazu Kore-eda
8- Un Prophète Jacques Audiard
9- The Curious Case Of Benjamin Button David Fincher
10- The Hurt Locker Kathryn Bigelow

11- Che Steven Soderbergh
12- The Limits Of Control Jim Jarmusch
13- Låt den rätte komma in [Let The Right One In] Tomas Alfredson
14- Afterschool Antonio Campos
15- Les Plages D'Agnès Agnès Varda

16 - Eden Lake James Watkins
17 - Up Pete Docter
18 - Moon Duncan Jones
19 - Gake no ue no Ponyo Hayao Miyazaki
20 - Revolutionary Road Sam Mendes

Inéditos em sala em 2009

1- A Serious Man Joel e Ethan Coen
2- Antichrist Lars von Trier
3- The Bad Lieutenant: Port Of Call - New Orleans Werner Herzog
4- La Belle Personne Christophe Honoré
5- (500) Days Of Summer Marc Webb
6- Up In The Air Jason Reitman
7- The House Of The Devil Ti West
8- The Box Richard Kelly
9- Black Dynamite Scott Sanders
10-El Secreto De Sus Ojos Juan José Campanella

6.1.10

Melhores de 2009 (João Ricardo Branco)


1. The Curious Case of Benjamin Button (David Fincher)
2. Gran Torino (Clint Eastwood)
3. Two Lovers (James Gray)
4. Inglourious Basterds (Quentin Tarantino)
5. The Wrestler (Darren Aronofsky)
6. Redbelt (David Mamet)
7. The Hurt Locker (Kathryn Bigelow)

2009 não foi propriamente um ano com muitos filmes memoráveis (eis a razão por que me fiquei por um TOP7), mas pelo menos os quatro primeiros da lista estão entre o que de melhor se fez ao longo da década.

Se o Cinema é a Arte da memória e o Acto de preencher com imagens o vazio que carregamos dentro de nós, então só «The Curious Case of Benjamin Button» poderia ser o meu filme de 2009, pois não houve em todo o ano obra que me tenha preenchido tanto ou que me tenha gravado tantas e tão boas memórias. Memórias das imagens projectadas no grande ecrã e memórias do acto de ser espectador nas três vezes que vi o filme em outras tantas salas de Cinema.

A minha preferência pelo filme é, pois, essencialmente de ordem afectiva. Mas há também razões eminentemente cinematográficas que justificam em pleno esta escolha. Por exemplo: o modo como David Fincher, no auge da sua maturidade artística, erige um verdadeiro e intemporal colosso narrativo feito de imagens em que o plasticamente belo se dilui numa delicada teia de emoções, sempre harmoniosamente em crescendo até ao arrebatador final; a perfeição técnica de todos os elementos essenciais; a forma como a depuração das imagens e a sublimação do acto de realizar nos devolve esse lado primordial de exaltação do Cinema pela história, como no grande Cinema clássico; a inesquecível interacção entre Pitt e Blanchett, quase milagrosos em todas as cenas em que contracenam…

Nota ainda para: «Gran Torino», o genuíno e comovente testamento cinematográfico de Eastwood; «Two Lovers», o triângulo amoroso que James Gray transforma em brilhante ópera trágica; e «Inglourious Basterds», a vibrante aventura de Tarantino sobre o poder explosivo do Cinema.

Melhores de 2009 (Paulo Albuquerque)

1 - Gran Torino de Clint Eastwood
2 - Public Enemies de Michael Mann
3 - Changeling de Clint Eastwood
4 - Still Walking de Hirozaku Koreeda
5 - Inglorious Basterds de Quentin Tarantino
6 - The Hurt Locker de Kathryn Bigelow
7 - The Strangers de Bryan Bertino
8 - The Wrestler de Darren Aronofsky
9 - Two Lovers de James Gray
10 - Ne Change Rien de Pedro Costa, Che de Steven Soderbergh, e La Mujer Sin Cabeza de Lucrecia Martel



Inéditos:
1 - City of Life and Death de Chuan Lu
2 - 24 City de Jia Zhang-Ke
3 - Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans de Werner Herzog
4 - House of the Devil de Ti West
5 - Ballast de Lance Hammer, Mother de Bong Joon-ho e À l'Aventure de Jean-Claude Brisseau



Albums:
1 - Thomas Köner - La Barca
2 - Mulatu Astatke & The Heliocentrics - Inspiration Information vol 3
3 - Olafur Arnalds - Found Songs
4 - Group Doueh - Treeg Salaam
5 - Camera Obscura - My Maudlin Career
6 - Zelienople - Give It Up
7 - Alasdair Roberts - Spoils
8 - 2562 - Unbalance
9 - Sunn O))) - Monoliths & Dimensions
10 - Leyland Kirby - Sadly the Future Is No Longer What It Was
11 - Grizzly Bear - Veckatimest
12 - Ben Frost - By the Throat
13 - V.A - 5 Years of HyperDub
14 - Animal Collective - Merryweather Post Pavillion
15 - Black Dice - Repo
16 - Richard Hawley - Truelove's Gutter
17 - Tim Hecker - An Imaginary Country
18 - Lightning Bolt - Earthly Delights
19 - Jasper TX & Anduin - The Bending Of Light
20 - Lhasa - Lhasa
21 - David Sylvian - Monafon
22 - Merzbow - Japanese Birds vol 7
23 - Madlib the Beat Konducta - Vol 5 & 6: A Tribute to Dil Cosby & Dil Withers
24 - Pissed Jeans - King of Jeans
25 - Alela Diane - To Be Still
26 - Lee Fields & The Expressions - My World
27 - Fever Ray - Fever Ray
28 - Zu - Carboniferous
29 - Pan Sonic & Keiji Haino - Shall I Download A Black Hole And Offer It To You
30 - Them Crooked Vultures - Them Crooked Vultures, Mika Miko - We Be Xuxa e The Sa-Ra Creative Partners - Nuclear Evolution: The Age of Love

5.1.10

Porquê Shyamalan?!



Eu gostava mesmo de estar expectante para isto, mas estes planos que parecem saídos de um Troy 2 com barcos CGI para encher o olho não prometem nada de bom...

3.1.10

Top 2009 (Nuno Gonçalves)


1 Gran Torino
Clint Eastwood
2 The Wrestler
Darren Aronofsky
3 Two Lovers
James Gray
4 The Hurt Locker
Kathryn Bigelow
5 The Curious Case of Benjamin Button
David Fincher
6 Redbelt
David Mamet
7 La Mujer Sin Cabeza
Lucrecia Martel
8 Aruitemo aruitemo
Kore-Eda Hirokazu
9 The Strangers
Bryan Bertino
10 Public Enemies
Michael Mann







Realização
James Gray (Two Lovers)

Interpretação Masculina
Mickey Rourke (The Wrestler)/ Joaquin Phoenix (Two Lovers)

Interpretação Feminina
Meryl Streep (Doubt/Julie & Julia)

Argumento
Aruitemo aruitemo

Fotografia
Public Enemies

Banda Sonora Original

The Curious Case of Benjamin Button

Revelação
Jeremy Renner (The Hurt Locker)




25.12.09

Melhores de 2009 - Miguel Galrinho


Aqui fica uma lista dos meus filmes preferidos de 2009.

Vale a pena referir que os três primeiros lugares, noutro dia e com outra disposição, poderiam trocar de ordem entre si.

1. Gran Torino, de Clint Eastwood
2. Two Lovers, de James Gray
3. Changeling, de Clint Eastwood
4. The Wrestler, de Darren Aronofsky
5. Inglourious Basterds, de Quentin Tarantino
6. Redbelt, de David Mamet
7. Still Walking, de Hirokazu Koreeda
8. Up, de Pete Docter
9. The Curious Case of Benjamin Button, de David Fincher
10. Valkyrie, de Bryan Singer

6.9.09

Grandes Trilogias (II)



A frieza, o distanciamento e a solidão de Blue, o humor negro e o surreal argumento de White e o sentimentalismo, a emoção e o poder das relações humanas de Red fazem com que esta seja uma das melhores trilogias da História do Cinema. Krzysztof Kiesloweski é um génio (não esquecer também Dekalog e The Double Life of Veronique).

16.5.09

Heresia!


Parabéns a Ron Howard e à equipa técnica de Angels & Demons por terem conseguido transformar o bom entretenimento que Dan Brown escrevera, por mais descabido e over-the-top que fosse o registo adoptado pelo autor, no mais gritante monumento de inverosimilhança e espalhafato dos últimos tempos.

A câmara agonia de tantas voltas que dá, não adopta um ponto de vista mas antes uma dezena deles, o argumento desperdiça todas as boas ideias oferecidas de bandeja pelo romance, alterando-o largamente e convertendo grande parte da intriga num jogo de unir os pontos desprovido de quaisquer significados. Tudo é previsível, requentado e, acima de tudo, há uma noção totalmente errada do ritmo a adoptar, dando um efeito de aleatoriedade à trama que culmina no final ultra-climático que resulta dos mais anedóticos de que há memória.

As queixas de que The Da Vinci Code era maçador e demasiado explicativo foram tidas em conta, sem meio termo: aqui os diálogos do tipo palestra histórica são reduzidos ao mínimo, com algum humor à mistura, e tornam-se tão vazios que quase não se sente a ameaça dos Illuminatti, ponto fulcral de todo o empreendimento...
É, sem dúvida, uma das piores adaptações cinematográficas de um romance, ao confundir simplificação com esvaziamento de conteúdo, para mais sendo servida por uma encenação sem qualquer ideia definida.

No lado "positivo", Tom Hanks regressa mais convincente como Robert Langdon, mas o argumento do filme transforma-o num peão completamente descartável e maltratado no desfecho, quando até havia potencial para uma exploração, simplista que fosse, da sua busca pela Fé. O par protagonista, que no livro ganhava química através das peripécias mirabolantes que sofria, aqui não a tem porque é abruptamente separado a meio do filme. Aliás, interacção é algo que não existe entre as personagens do filme, que derivam ao sabor da incompetência do argumento.

E depois há aquele irrealista Vaticano digital... E uma das piores cenas de tiroteio de sempre... E planos e mais planos de repórteres a debitarem banalidades em várias línguas vezes sem conta... E que dizer da banda-sonora, que deveria vir com um aviso de epicidade, para o espectador mais incauto não furar os tímpanos com o volume dos coros e os agudos e horríveis solos de violino?

Haverá, sem dúvida, objectos muito piores, mas este consegue a proeza de tornar The Da Vinci Code num melhor filme por comparação (e até National Treasure...), o que tendo em conta a base literária era um feito quase impossível. A intriga religiosa é tão confusa, rebuscada e, em última instância, ridícula que, não fosse tão inofensiva e descartável, poderia ofender algumas almas católicas mais susceptíveis... Haveria mesmo necessidade de dois grandes planos do cadáver putrefacto do Papa?

Por mais polémicas religiosas que possa suscitar, Angels & Demons é, acima de tudo, uma heresia contra o Cinema e um explosivo exemplar de anti-matéria artística.

10.2.09

Black Hawk Down



É sempre possível ver Ridley Scott a entregar acção de qualidade, desde que, claro, voltemos atrás alguns anos no tempo. Personagens dimensionadas através do espaço em que se inserem, cujo horror é captado exemplarmente pela câmara de Scott. O cuidado e eficaz trabalho de câmara, fotografia e direcção de actores transformam um banal argumento num grande filme de guerra.

Qualquer semelhança com o cada vez mais insuportavel piloto automático dos últimos filmes de Ridley Scott é, pois, pura coincidência.

9.2.09

Slumdog Millionaire


Cada vez mais se sente que os Óscares e toda a temporada de prémios que os antecipam são nada mais que um mero concurso de popularidade, que pouco visa a qualidade das obras propostos. O filme com mais prémios ganhos e mais buzz é naturalmente o eleito e perde-se totalmente o intuito da própria diversificação da premiação com Slumdog Millionaire a assumir-se enquanto coqueluche do ano, destinando-se assim a ganhar o Óscar de Melhor Filme no próximo dia 22 de Fevereiro. Conta a história de um jovem muçulmano, feito órfão em terna idade e obrigado a viver numa favela do Mumbai com o irmão que mais tarde se transforma num criminoso de rua. Jamal no entanto sonha apenas com um dia reencontrar a rapariga que com eles cresceu e ao tornar-se num afamado candidato ao prémio máximo do concurso Quem Quer Ser Milionário, espera assim cumprir o seu destino.

É com um extremo travo de desilusão e alguma resignação com que se vê este filme de Danny Boyle, com o intuito inicial de alguma consciencialização, a transformar-se numa história de amor de novela juvenil e com uma total nulidade de ressonância dramática. Tudo em Slumdog Millionaire é superficial, desde a execução vistosa mas cansativa do realizador ao carácter meramente decorativo das personagens e dos actores que a interpretam, mas sobretudo a forma como o enredo se vai descortinando, sempre mecânica, redutora e sem qualquer encanto ou deslumbramento. Chega a ser chocante a visão maniqueísta como Boyle explora a pobreza da Índia e dos seus mais desafortunados habitantes no intuito de uma reacção imediata por parte do espectador, um recurso aviltante e cobarde de aproximação do mesmo à história e que prova que hoje em dia parece ser admissível apelar à mentira, desde que provoque um sentimento efusivo de (falsa) exaltação. Cortes rápidos, música intrusiva e uma quantidade quase insultuosa de melodrama sintético tornam-se cruciais para tornar a experiência mais prazenteira.

Torna-se difícil de acreditar que um filme descartável e indigente como este irá perdurar até na memória dos seus fãs actuais mais acérrimos e se daqui a um ano, e passado todo este entusiasmo postiço, alguém defenderá que Slumdog Millionaire merece figurar no capitulo de história cinematográfica do ano que passou. Enquanto isso assistimos à celebração da mediocridade em prol da solidarização global. That’s showbusiness.

The Wrestler


À semelhança do trabalho magnífico de Bruce Springsteen, também «The Wrestler» se constrói como uma canção que faz o seu herói caminhar à deriva, procurando um refrão que justifique a sua existência e o integre numa dignidade que julgava irreversivelmente perdida. «The Wrestler» é a história de um lutador de wrestling em fim de carreira (alguns diriam, para lá do fim) chamado Randy "The Ram" Robinson a tentar permanecer relevante e a fazer o que mais gosta... até ao momento em que um problema de saúde o leva a repensar o seu modo de vida.


«The Wrestler» é um tour de force, uma história sobre redescobrir quem somos e o lugar que ainda podemos ocupar no mundo, mesmo que o mundo não nos queira nele. Há um realismo inegavelmente comovente na realização de Aronofsky, um compromisso que o cineasta coloca na câmara desde o início, sem receio de procurar a glória e a dignidade em qualquer espaço da vida de Randy, fosse no ringue a conquistar vitórias em lutas previamente encenadas, ou no supermercado a vender carne, seguindo-o e acreditando sempre que a sua história merece ser contada.


É impossível falar de «The Wrestler» sem falar em Mickey Rourke, o actor que Aronofsky queria, desde o início, para o papel e que, inicialmente, por questões comerciais, foi entregue a Nicholas Cage. Mas raras vezes uma personagem encaixou tão bem no actor que a interpretou, de uma forma completamente autobiográfica e com ressonâncias melodramáticas absolutamente devastadoras. Reconhecem-se em Randy, traços das mágoas que Rourke chora do seu passado, da carreira que lhe passou ao lado e que tenta, agora, recuperar.

Os dois redescobrem-se na glória que perseguem e no passado que tentam reviver, num mundo onde procuram o espaço que ainda lhes resta. É essa a comoção de que se falava. A verdade que reaparece por força do ocasional, uma história que merece ser contada ou percebermos que não somos imortais. E, acima de tudo, procurarmos o nosso lugar no mundo e sabermos que, por circunstâncias da vida, ele nunca é o mesmo ao longo do tempo.

14.1.09

A presença de Eastwood

Nada podia ser mais comovente do que o regresso de Clint Eastwood, não só atrás das câmaras no magnífico «Changeling», como à frente (pela última vez?) num dos filmes mais definitivos do cineasta e da sua presença no cinema: «Gran Torino».


Desengane-se quem tenta ver em «Changeling» um filme de época ou um telefilme sociológico que pretende denunciar um caso verídico e todos os organismos sociais e políticos que o integram. É, claro, também sobre isso; é um filme radical sobre o confronto do indivíduo com os mecanismos sociais que contrariam a sua existência, mas é também um filme silenciosamente destruído pela perversidade de uma narrativa que se constrói contra uma mãe que tem de aceitar um filho que não é seu. Mais do que isso, a solene desconstrução da infância angélica e delicada, espelhada no rosto de uma criança que se faz passar por um filho que não é (com uma seriedade que, por vezes, nos gela os sentidos), bem como por outras crianças cuja narrativa parece convocar para o fim de uma inocência irreversivelmente perdida.

Num filme onde a estarrecedora fotografia ilumina cada imagem como se as memórias de uma época fossem, de uma vez só, uma presença irrevogável e uma utopia cinematográfica, é Angelina Jolie que se torna a mais espantosa componente humana e entrega uma das interpretações mais intensas e angustiantes dos últimos anos (e, sem qualquer hesitação, da sua carreira).

De Clint Eastwood, sente-se no filme uma desconcertante serenidade e uma sobriedade clássica na construção das imagens, na montagem e no confronto de planos (porque cada plano encena em si mesmo, a vontade e o destino do realizador e do actor). A profundidade do campo/contra-campo regressa à obsessão milimétrica de «Mystic River», também porque o confronto ideológico exige uma certa dimensão operática que Eastwood tão bem conhece. Mas existe nas imagens também o intimismo e a respiração dramática de «Million Dollar Baby», sabendo que a própria câmara pode desaparecer, a espaços, para se filmar um olhar ou uma lágrima com a mesma tragédia. É um filme infinitamente belo... tão belo quanto triste.



De «Gran Torino», a primeira imagem a reter é a presença incontornável de Clint Eastwood no regresso ao ecrã. E a sua presença não podia ser mais autobiográfica: um velho americano solitário (após a morte da sua mulher) e céptico em relação a todo o mundo que o rodeia. O filme é, de uma certa forma, o testemunho que o cineasta passa ao mundo de toda a sua presença no cinema, uma espécie de justificação assombrosa e artística da sua maneira de olhar o mundo, a vida e os espaços à volta.

Clint Eastwood interpreta Walt Kowalski, um veterano de guerra que não se reconhece na sua família, foge da sua vizinhança, rosna à futilidade angustiante da juventude, faz comentários racistas e chora em silêncio a perda da sua mulher. Aflorado por momentos de humor muito divertidos, o filme esconde uma dor devastadora. Não só a dor de estar sozinho, mas a possibilidade de morrer sozinho. Da tragédia iminente surge, claro, a possibilidade do melodrama. Por outras palavras, é possível reencontrar uma sensação de legado que justifica a vida, a morte, a velhice e a juventude, o clássico e o contemporâneo. E que maior símbolo de legado poderia haver do que o Gran Torino, carro emblemático americano a que o título faz alusão e que simboliza de uma vez só, o ancestral e a imponência.

Existe, de forma nada ocasional, um olhar sarcástico desse ancestral e imponente Clint Eastwood sobre a juventude, seja no seu olhar agastado sobre os piercings ou na recorrência de expressões de indignação sobre os comportamentos dos jovens. Nesta história, um jovem em particular irá produzir um efeito invulgar na narrativa quando a sua vida se cruza com a de Walt e o seu Gran Torino. De facto, existe nessa relação uma espécie de verdade que se distancia da vida e da religião (em boa verdade, a fé é algo que existe, neste filme, como uma crença redescoberta no humano).

Tudo em «Gran Torino» é uma lição de vida, desde a criação de uma família, ultrapassando raças e idades, até à dimensão moral que integra os destinos de cada um. Por razões deontológicas, importa não revelar o desfecho de «Gran Torino», mas é impossível, por cada lágrima que nos escapa, não sentirmos que a presença de Eastwood no ecrã nunca foi tão decisiva e apoteótica. Um pequeno milagre para nunca deixarmos de acreditar no cinema.

11.1.09

2008 (João Eira)

As estreias em sala no ano que passou foram escassas em qualidade. Consequência dos avanços tecnológicos que ditam um aumento da pluralidade de meios de divulgação das artes audiovisuais, mas também da já tradicional e generalizada mediocridade nas decisões dos responsáveis nacionais pela distribuição e divulgação dos filmes.

Nos media especializados, é difícil distinguir o amador do (supostamente) profissional. O número de revistas de cinema parece aumentar na proporção inversa da geração de verdadeiro pensamento crítico. A adjectivação fácil, comparação gratuita, a reciclagem das mesmas tretas sobre reinvenção do género ou sobre a invasão da mediocridade televisiva. O tomar a pequenez e irrelevância da crítica nacional (que se confunde aliás com a irrelevância do próprio cinema português) como sinal de independência ou criatividade, são já um hábito deste País cheio de críticos e cineastas incompreendidos.

Antes de deixar os meus favoritos do ano, não posso deixar de destacar o inédito Redbelt, verdadeiro tratado sobre a honra, e uma pedrada no charco que é este mundo de relativização de valores e códigos éticos. Para lá de qualquer enquadramento religioso ou filosófico, Mike Terry, protagonista do filme, permanece comigo como exemplo do que é dar sentido a uma Vida.


Sem mais rodeios, aqui ficam os filmes que me marcaram neste (pela positiva e pela negativa):

Os Dez Mais

There Will Be Blood - Paul Thomas Anderson


We Own the Night - James Gray
No Country for Old Men - Joel & Ethan Coen
Before the Devil Knows You´re Dead - Sidney Lumet
The Dark Knight - Christopher Nolan
The Happening - M. Night Shyamalan
La Frontière de l`Aube - Phillipe Garrel
Lust, Caution - Ang Lee -
Indiana Jones and the Kingdom of the Cristal Skull - Steven Spielberg
Hunger - Steve McQueen

Merecendo ainda referência os regressos de Coppola com Youth Without Youth e de Resnais com Coeurs, a ousadia politica e socialmente incorrecta de Stallone em Rambo e de Padilha em Tropa de Elite, a candura indie de Juno, a dureza do drama de 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias.


Recycle Bin

The Assassination yadda yadda
Cloverfield
Rendition
Sleuth
In the Valley of Elah
10000 BC
The Mist
Speedracer
Gomorra
Paris

10.1.09

Solidão



9.1.09

«Changeling» e os seus vários filmes


Há vários filmes em «Changeling» (Eastwood, 2008), e desses apenas um vale realmente a pena. Os outros perdem-se ou falham por diversas razões ou limitam-se a gerir competentemente as suas informações. «Changeling» surge, assim, como um objecto bom e estimável, mas que é directamente remetido para as margens da obra de Clint Eastwood, onde se situam os seus filmes menos memoráveis.

Em matéria de filmes dentro do filme, há, desde logo, o filme da mãe solitária que vê o seu filho desaparecer de casa. É o melhor dos filmes de «Changeling». Aquele em que emerge um melodrama sombrio e ponderado, esteticamente elegante e sempre triste, muito triste, de uma tristeza imperturbável que se instala delicadamente nas imagens, sem imposições artificiais nem movimentos abruptos. É o filme que ilumina o rosto soturno de Angelina Jolie e é contaminado pela convicção dos seus gestos e pela obstinação do seu olhar. Dir-se-ia que é o filme clássico de «Changeling», pautado por uma perfeita harmonia e equilíbrio entre a composição das imagens e as personagens e emoções que as habitam, numa gestão rítmica sem mácula.

Depois, há o resto. Há o filme policial, em que se investiga o desaparecimento da criança e outras situações relacionadas; há o filme político-social, em que se procura caracterizar a corrupção e a falência moral das forças públicas da Los Angeles dos anos 20 e 30 do século XX; e há, enfim, o filme de tribunal, sobre a Justiça enquanto instituição e enquanto valor intrínseco. Nenhum destes filmes convence totalmente ou impressiona do ponto de vista cinematográfico. Eastwood já fez mais e melhor em cada uma dessas áreas e em «Changeling» não só não traz nada de significativo, como, de um modo geral, simplifica e retira complexidade ao que já mostrou no passado. O filme policial, por exemplo, é totalmente convencional nos seus termos, rotineiro até; longe, muito longe, da complexidade e do peso que habitava cada frame do fabuloso «Mystic River» (Eastwood, 2003). Por outro lado, se o filme de tribunal é relativamente eficaz e bem engendrado — contando, aliás, com a excelente e fordiana personagem do advogado —, já o filme político-social é pouco mais do que medíocre nas suas componentes fundamentais e perde-se numa série de maniqueísmos e de simplismos que prejudicam irremediavelmente a obra.

Em geral, existe também uma construção algo duvidosa de certas personagens, ora reduzidas a meros bonecos despidos de qualquer dimensão humana (de que é exemplo paradigmático o psiquiatra), ora erigidas a meros instrumentos narrativos sem existência própria (por exemplo, a prostituta), ora reduzidas ao mínimo de complexidade (e portanto de interesse) possível (a personagem do polícia ou do pastor, por exemplo). De resto, a experiência cinematográfica surge também prejudicada, a espaços, por certos desvios de tom (como pequenos laivos de comédia de duvidosa pertinência) e por alguns excessos de realismo que contrastam de forma demasiado pronunciada com a subtileza e contenção geral do drama.

Regressando ao delicado melodrama que eleva qualitativamente a obra, não pode deixar de realçar-se o admirável trabalho de representação de Angelina Jolie, brilhante em todas as cenas em que aparece e com uma gestão de emoções verdadeiramente impressionante. Despido de tudo o resto — da política e da polícia, da justiça e da sociedade — «Changeling» consegue ser intimista e vibrante. Angelina Jolie e o drama que solitariamente consegue construir fazem-nos pensar no quão extraordinário poderia ter sido «Changeling» se tivesse ficado apenas com ela.