The Darkest Knight
É tarefa ingrata a comparação de filmes dedicados a super-heróis provenientes do já muito explorado mundo dos comics. Não que não existam obras no género passíveis de serem mencionadas ao lado dos ditos filmes “comuns”: existem exemplos ainda recentes de Spiderman 2 e especialmente X-Men 2. Um número que parece repetir-se com uma recorrência bizarra, tendo em conta que o primeiro filme que elevou tão deliberadamente a fasquia a um ponto de equiparação inevitável foi também uma sequela envolvendo a personagem que agora se fala. Tim Burton com Batman Returns radicalizou o super-herói e o seu vilão em cinema, ainda que na altura as repercussões não tenham sido tão perceptíveis.
Sem pretender invocar rodeios do destino, parece que o fado de metamorfosear novamente o género só poderia caber a The Dark Knight. Os paralelismos de Nolan com Burton são evidentes: um primeiro filme a apontar uma nova direcção, um renascer das potencialidades do herói enquanto espelho do ser humano comum, mas a ser aprimorado até ao refinamento apenas no segundo capítulo. E é aqui que reside a fatal génese de algo ainda mais problemático de caracterizar devidamente. Não porque o realismo invocado o aproxime mais do retrato do cinema contemporâneo, ainda que isso seja verdadeiro e comparações a obras como Heat não sejam de todo desapropriadas. Mas existe aqui uma força maior que corrompe tudo o resto, inclusivé a própria estrutura do filme. Algo que Nolan, pelas palavras de Joker, assume ser o Caos.
E ele é tão imperceptivelmente devastador e de uma persistência tão sufocante, que no final tudo se desmorona com uma pacificidade devastadora, como se fosse na descoberta da isenção da esperança que se encontrasse a harmonia. No capítulo anterior, Bruce Wayne assume o seu dever involuntariamente, para proteger o que faz sentido, quando ainda tem tudo a perder. No final de The Dark Knight fá-lo novamente, mas num momento em que nada mais parece subsistir para ser demolido. Assume o seu papel de herói ao transformar-se no vilão. Muitos sacrifícios são feitos ao longo do filme, sem qualquer efeito redentor. Mas é para a aparentemente infrutífera busca da redenção que continua a dirigir-se, mesmo quando para isso seja determinante mutar-se no arauto da escuridão.
Assim The Dark Knight ousa redefinir o papel do herói, muito para além dos meandros do género que está inserido. Pode-se falar da acutilância da realização de Christopher Nolan, na forma como cria uma cidade pulsante e reconhecivelmente anónima, como cria um arrebatador enredo que tem como motivos não as frenéticas e inspiradíssimas cenas de acção mas personagens cujo drama psicológico existe muito para além da sua função narrativa. Pode-se falar na audaciosa sinuosidade da música composta novamente por Hans Zimmer e James Newton Howard e do imaculado elenco liderado pelo sempre competente Christian Bale, constituído por alguns dos melhores actores de Hollywood, com Maggie Gyllenhaal a oferecer a Sarah uma dimensão impensável e Aaron Eckhart a exigir dominantemente que se pense mais nele e em tudo o que é capaz. Pode-se falar da perpetuidade da interpretação de Heath Ledger que num verdadeiramente imortal e irrepetível acto de transfiguração nos deixa um legado dolorosamente incompleto. Pode-se, e deve-se, falar em todas estas coisas. Mas a herança maior de The Dark Knight é esta desorientadora e solitária reinvenção do ser humano por detrás do vulgo herói e a determinada, e não desesperada, escolha de um destino inglório para que o mundo gire no seu harmonioso desequilíbrio.
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