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28.3.07

O que buscamos no Cinema?

Qualquer cinéfilo que se preze (ou, de forma mais lata, qualquer espectador minimamente interessado) encara o Cinema (também) como uma busca. Quer dizer, olha para as imagens em movimento que fazem o Cinema ser Cinema não como acto final ou absoluto mas como caminho. Numa outra formulação, porventura mais evidente, poder-se-á afirmar que o compromisso de sermos espectadores de Cinema é, desde logo, um compromisso de participação e de diálogo com as imagens que recebemos. Esse diálogo com as imagens só existe, no entanto, em sentido pleno, se buscarmos nelas alguma coisa (que, à partida, pode ser tudo, pois o Cinema é a Arte de todas as possibilidades).

O que buscamos, então, quando nos relacionamos com o Cinema? Trata-se, bem sei, de uma questão de irresistível e inultrapassável subjectividade. Mas sempre se poderá dizer, sem grandes imprudências, que buscamos primeiramente memórias. Acima de tudo, memórias. Que memórias? Desde logo, claro, as memórias que o cinematógrafo registou (não esquecer que, em termos naturalísticos, as imagens que vemos projectadas correspondem sempre a um passado). Depois, e sobretudo, buscamos imagens que perdurem em nós enquanto memórias (na nossa memória). Os anos passam e as memórias dos filmes que vemos aglutinam-se no nosso espírito, de tal modo que essas memórias se vão progressivamente transformando em memórias de memórias, num processo de tranquila eternização daquilo que é verdadeiramente marcante. O Cinema é a Arte da memória, pois claro.

Mas mais importante do que aglutinar essas memórias é saber o que fazer com elas. O que nos leva, por sua vez, a uma questão prévia: que tipo de memórias queremos guardar? Ou, noutra formulação, e retomando a questão anteriormente colocada: o que buscamos no Cinema? É esta a perspectiva que neste contexto mais me interessa, porque é nela, de facto, que pode habitar toda a subjectividade do mundo. Cada um de nós busca sempre algo de significativo nos filmes que vê, seja ele a transcendência ou simplesmente o impacto estético, intelectual, emocional ou moral de uma grande história. É claro que qualquer uma dessas dimensões pode coexistir no mesmo filme ou no mesmo espectador. Mas no limite há sempre algo que nos faz correr mais longe…

Pela minha parte, esse “algo” que me faz correr mais longe é o radicalismo. O que mais me mobiliza na minha relação com o Cinema é, de facto, a busca de imagens radicais. E com radicalismo pretendo acentuar as experiências mais próximas das margens do que do centro, que desafiem o olhar para além dos normais desafios da vida. Esta busca do radicalismo é, no fundo, como bem se compreende, uma busca da transcendentalidade (da Arte) das coisas. Certo é que esse radicalismo se pode manifestar nas mais diversas configurações, ter as mais diversas fontes e resultar das mais diversas conjugações. Por exemplo: o radicalismo formal, que dissocia som e imagem, presente em «India Song» (Duras, 75); a obsessão radical vivida por “Scottie” em «Vertigo» (Hitchcock, 58); a viagem ao infinito de «2001: A Space Odyssey» (Kubrick, 68); a transcendência de «Persona» (Bergman, 66); a forma como a incapacidade de amar é retratada em «L’Eclisse» (Antonioni, 62); o abismo que habita o olhar de Anne em «Vredens Dag» (Dreyer, 43); a trepidante evocação de memórias de «Zerkalo» (Tarkovsky, 75); a relação intelectual entre homem e mito presente em «Young Mr. Lincoln» (Ford, 39); a dolorosa busca de amor protagonizada por David em «Artificial Intelligence: AI» (Spielberg, 01), etc.

Vinha tudo isto a propósito de «The Fountain», filme de muitos radicalismos. Ponto a retomar num próximo texto...

6.1.07

Memórias do Futuro

Vermelho é, de longe, o melhor filme da Trilogia das Cores, de Kieslowski. Uma jovem modelo atropela um cão e resolve procurar o seu dono, conhecendo assim um velho juíz, já reformado, que espia as chamadas telefónicas dos vizinhos. Ele é cínico e distante, ela é bondosa e simpática. Curiosamente, entre ambos nascerá um sentimento de fraternidade cada vez mais forte, que os leva a partilharem os sentimentos mais íntimos. Ou, pensando melhor, talvez não seja assim tão curioso: afinal de contas, mais ainda do que as semelhanças que partilhamos, são as diferenças que nos aproximam. Trata-se, no limite, de uma componente especificamente humana da qual nos parecemos esquecer, e que Kieslowski faz questão de desenvolver neste filme.

Enquanto ele lhe conta a história da mulher que amou na universidade, acompanhamos outras personagens que não estão aparentemente ligadas, mas que são desenvolvidas numa espécie de construção de filme-mosaico, e que, no final, fazem tudo ter perfeito sentido. Um sentido que não é só narrativo, mas acima de tudo dramático. Sem querer revelar pormenores da narrativa, direi apenas que se repare no plano da troca de olhares, perto do final: raramente o amor à primeira vista foi capturado de forma tão magistral, em que o espectador, cúmplice dos sentimentos e das vivências de cada uma das personagens, percebe o que as une, mas elas próprias não. Depois de
Le Double Vie de Veronique, Kieslowski parece voltar a encontrar algo que une a humanidade; que une as almas umas às outras, sem que nos apercebamos disso, ainda que nos cruzemos diariamente.

Sem querer tirar mérito aos outros dois filmes da trilogia, que, como já referi neste blog, considero excelentes,
Vermelho está de facto noutro nivel de transcendência, com presença obrigatória numa lista dos melhores filmes da década passada.

2.1.07

Ainda a Memória

O segundo filme da Trilogia das Cores, de Kieslowski - Branco - é o menos perfeito da trilogia, tanto formalmente como a nível de complexidade e profundidade das relações, não deixando de ser, no entanto, menos hipnótico e fascinante.

Aliás: mesmo sendo o menos consistente dos três, trata-se provavelmente da experiência mais fascinante da trilogia, porque a menos convencional de um ponto de vista estritamente narrativo. Partindo de um divórcio entre uma francesa e um polaco, seguimos a vida que o homem leva a seguir, ainda apaixonado e consumido pela mais louca das paixões. O que poderia ser uma reflexão sobre o amor, a dor e a perda (como é
Azul), torna-se, sob o tema da (des)igualdade, uma espécie de comédia satírica (intercalada por algumas subtilezas dramáticas) sobre as consequências desse louco amor, tendo como base um argumento que assenta nas situações mais absurdas e irrealistas. Aquilo que cairia facilmente no ridículo, caso não tivesse uma realização que lhe conseguisse dar o tom adequado, torna-se, graças ao talento de Kieslowski, num fabuloso filme sobre as consequências do amor quando não consegue ser esquecido (o problema da memória, mais uma vez).

Sem dúvida mais metafórico que realista - atente-se especialmente à troca de gestos e de olhares (e de lágrimas...) na cena final -, mas por isso mesmo tão fascinante e encantador. Ou, se quisermos simplificar: cinema em estado puro!

30.12.06

A Persistência da Memória

O primeiro filme da famosa Trilogia das Cores, de Kieslowski - Azul - tem como tema a liberdade, que aborda de forma bastante curiosa: uma mulher, após perder o marido (compositor mais famoso da Europa) e a filha num acidente de automóvel, tenta ultrapassar o sofrimento desligando-se de todas as recordações que tinha da família e evitando laços afectivos, procurando um sentimento de total liberdade. Ou, por outras palavras, tenta lidar com a dor da perda abandonando o espaço físico que habitava, na esperança de que a memória (e mesmo acontecimentos presentes, com o recurso constante à música que compunha) não persistisse em trazer-lhe recordações do marido. Desta forma, pensava, poderia atingir a liberdade que desejava. Mas a liberdade não será às vezes a maior das prisões?

Uma obra de arte absoluta, construída numa simbiose perfeita entre imagem e som, em que cada silêncio ou cada fragmento de música que é ouvido pode ter a mais poderosa função dramática.