14.2.07

A Barreira Invisível

Há mais de quarenta anos Hollywood viu nascer um dos seus maiores ícones... num filme italiano. Per un pugno di dollari de Sergio Leone deu origem a uma das mais aclamadas e amadas sagas de sempre, com foco central no herói dúbio e silencioso de Clint Eastwood. O resto é História e o actor tornou-se numa das mais reconhecidas estrelas do cinema norte-americano. No entanto, nos dias de hoje, parece ser um feito que passa para segundo plano em comparação com o seu maior talento: a realização. E aos 77 anos parece encontrar-se na sua época áurea tendo realizado desde o virar do milénio os melhores filmes da sua carreira, como Mystic River e o já imortal Million Dollar Baby.

O seu último projecto consiste no lançamento de dois filmes irmãos: Flags of Our Fathers e Letters from Iwo Jima, retratos dos dois lados da batalha da ilha de Iwo no Japão, uma das mais decisivas da 2ª Guerra Mundial. O primeiro estreou em Janeiro e foi uma inesperada desilusão, recheado de primor técnico mas desprovido de uma história relevante que abarcasse os eventos fatídicos e salvasse o filme de um estranho e desconfortável vazio emocional. No entanto, depois de ver Letters From Iwo Jima, com a respectiva visão japonesa da batalha, é difícil não perdoar a “falha” de Eastwood (ou mais propriamente do seu argumentista), quando este nos entrega uma das suas mais belas e importantes obras e uma das mais comoventes e inspiradas do género.

Ao contrário do que acontece com Flags of Our Fathers, somos confrontados desde o inicio com personagens multidimensionais nas quais podemos decifrar vidas abandonadas para se dedicarem honrosamente ao seu país. Vidas das quais lembramos pequenos mas persistentes momentos que acabam por ser a chave da narrativa do filme. Começando pelo general que comanda as tropas que relembra com melancolia as alegrias conquistadas em terras agora inimigas anos antes e terminando no relutante soldado que deixou para trás a sua mulher e uma filha que nunca chegou a conhecer. É nestas personagens, e nas magnificas interpretações de Ken Watanabe e Kazunari Ninomiya que reside a alma do filme, que se reflecte em toda a sua duração e o impregna de uma Humanidade tão retumbante que no final se torna impossível retribuir a sobriedade com que é filmada, com genialidade e mestria, esta história.

Tal como acontecia de forma contrária em Flags of Our Fathers, aqui o inimigo, americano, não possui rosto durante grande parte do tempo e é quando lhe é atribuída uma cara que tudo muda. As linhas que os dividem esmorecem, mesmo quando equiparamos culturas bélicas e humanas tão distintas e próprias. A tragédia assombra desde cedo a campanha japonesa, quando ainda longe da batalha, o general explora as terras negras da pequena ilha, desolado pelo abandono por parte do exército imperial que ele e o seus homens experienciam. Uma batalha perdida à partida, sem heróis e com demasiados mártires cujas vidas, perdidas nas suas próprias mãos ou nas mãos do inimigo, medo e assolação são relembradas nas cartas que nunca alcançaram o seu destino. Letters From Iwo Jima é um singular e representativo marco do cinema de Eastwood e um dos mais relevantes filmes de guerra de que há memória.

No comments: