31.12.06

Cinema Paraíso


O cenário festivo da passagem de ano pode não ser mais que o palco para o momento mais desencantado do mundo, sem que o fogo de artifício que se vê ao longe signifique alguma coisa perante a solidão dos nossos sentimentos.

Ou simplesmente para recordarmos quão belo é o filme de Giuseppe Tornatore. Bom ano 2007!

Um ano de cinema em Portugal - O Pior (V)

FILMES

Já destaquei o academismo e o conjunto de estreias que invadem as salas sem que se vislumbre qualquer critério por parte de quem tem a responsabilidade de definir a programação. Existem no entanto obras que merecem destaque individual, pois, por razões diversas, marcaram negativamente o ano.

Pride and Prejudice
Risível adaptação de Jane Austen, que recebeu considerável apoio crítico e destaque mediático. Um tratamento visual anónimo, uma realização incompetente, desempenhos que parecem destinados a uma comédia nonsense. Tenebroso filme, a fazer certamente a autora de Sense and Sensibility revirar-se no túmulo!

Gabrielle
Patrice Chéreau, autor do desafiante Intimacy, regressou com novo projecto arrojado. Apesar das louváveis intenções, Gabrielle é um objecto de identidade vaga, oscilando entre os extremos do teatro filmado e de um abstraccionismo demasiadamente radical. Um filme com bons momentos, perdidos num mar de verborreia sonolenta proclamada em off que testa a paciência do mais estóico dos espectadores.

The Aristocrats
Colectânea de insultos de indescritível mau gosto disfarçada de documentário sobre o mundo da comédia stand-up. Cinema = ZERO.

Mission: Impossible III
O famoso produtor televisivo de Lost abraçou a realização da terceira encarnação do agente Ethan Hunt. Abrams mimetizou para o grande ecrã os visuais e o espírito narrativo da série Alias que o lançou para o sucesso. Tal como em Alias o único elemento de interesse é o carisma da protagonista, aqui a força de Tom Cruise segura o barco. Mas o resto - twists absurdos, um estilo visual marcado por grandes planos e uma sucessão acelerada, por vezes nauseante, de imagens e um completo desprezo pelas mais elementares regras do storytelling - faz ainda menos sentido que no pequeno ecrã e traduz uma contaminação de espaços que não tem só aspectos positivos.

The Proposition
Projecto independente rodeado de expectativas que pariu um gordo e rechunchudo rato. Carregado de violência gratuita e indigência visual, é o retrato de um cinema que quer ser indie, mas esquece-se de ser cinema.

98 Octanas
Marcado por uma patológica obssessão com a Nouvelle Vague e particularmente com Godard, este 98 Octanas tem tudo o que de negativo têm os últimos filmes de Godard, com alguns bónus extra. Disconexo e testando os limiares do pretenciosismo, atinge dimensões de ridículo surpreendentes, mesmo para um cinema português fértil no capítulo das megalomanias autorais. Para onde vai 98 Octanas? Para lado nenhum. E onde é que isso fica? Esperemos que longe, muito longe!

Lady in the Water
Shyamalan é porventura a maior revelação do cinema mundial da última década. Em meia dúzia de filmes construiu um universo com uma marca autoral sólida, visualmente arrebatador e com densidade ímpar. Pode até dizer-se, passe o exagero, que muita da esperança da sobrevivência do cinema clássico e de renovação do mesmo assenta nos ombros do jovem cineasta de Filadélfia. Mas, em Lady in the Water, Shyamalan deixou de acreditar no transcendente e passou a acreditar cegamente que ele era o Messias. A Fé nas imagens e no Cinema passou assim a ser a Fé no poder messiânico da sua própria história e na infalibilidade do seu cinema. Lady in the Water é assim um filme proclamativo, demagógico e maniqueísta, vítima ele próprio de muito daquilo que pretende criticar. É um objecto perigoso, pois vem embrulhado no papel dos belos visuais proporcionados pelo inegável talento de Shyamalan e do director de fotografia Christophe Doyle. Felizmente poucos mais convenceu que os grupos de fãs do realizador e alguns autoristas fanáticos. Recomenda-se a propósito o visionamento do pouco conhecido Wide Awake, segunda longa metragem do realizador e uma pequena obra prima, de um tempo em que o realizador se limitava a acreditar em Deus, não se julgando a sua encarnação terrena.

The Science of Sleep
Michel Gondry já havia nos havia trazido o simpático mas inconsequente Eternal Sunshine of the Spotless Mind. Confirma-se agora que Gondry, grande realizador de videoclips, não tem, pelo menos por ora, dimensão como cineasta. The Science of Sleep é uma colecção de lugares comuns mal ligados, martelados por um universo visual oriundo de um videoclip de Björk. Cheio de chico espertices, armado aos cucos e nascido no ninho da preguiça intelectual é um filme completamente idiota.

Um ano de cinema em Portugal - O Pior (IV)

O CASO BÉNARD

Os factos falam por si. Há países onde existem leis, regras, compromissos que devem ser e são respeitados por todos. Outros há, onde a lei só se aplica apenas ao comum dos mortais mas onde uma oligarquia reinante, perene e imortal, se considera e, está, de facto, acima da lei.
Alguém chega ao fim do seu mandato. Quem detém o poder decide -legitimamente- que, dada a longa permanência no cargo, o facto de já estar há três anos para lá do limite de idade inscrito na lei e a necessidade de renovação, é altura de mudar. O visado estrebucha, o séquito revolta-se, o poder cede. Mil setecentos e vinte e cinco pessoas deixam o seu nome na Internet e fazem política pelo governo. Viva a democracia! Viva Portugal!

Singing in the Rain

DENEUVE...
... DENEUVE...
... E DENEUVE!

Os Melhores de 2006 (Tiago Pimentel)

1. «Munique», de Steven Spielberg

Um dos grandes monumentos da década! Um filme que retrata a violência sem receio de assumir um ponto de vista que nada tem a ver com clubismo político, mas antes se centra na desumanização de todas as formas de violência. Em Avner podemos ver tudo: desde a paixão violentamente humana de vingar os seus conterrâneos, até à extinção moral do seu corpo, do seu espírito e de tudo aquilo em que ele acreditou.

2. «Uma História de Violência», de David Cronenberg

Um dos grandes filmes da carreira de Cronenberg teria que figurar nos lugares cimeiros desta pequena lista. Um pequeno milagre de cinema, de arte e de catarse como epílogo da tragédia que lhe antecedera. É também um filme sobre o medo: não só o medo dos outros, mas o medo daquilo que fomos e que podemos voltar a ser.

3. «The Departed: Entre Inimigos», de Martin Scorsese

Com esta obra prima de Scorsese, fica completa a trilogia da violência e identidade (juntamente com Munique e Uma História de Violência). Um grande filme, devolvendo a Nicholson o protagonismo dos grandes secundários e consagrando DiCaprio como o grande actor da sua geração.

4. «A Dália Negra», de Brian De Palma

Um dos filmes máximos de De Palma. Um filme negro que permite ao cineasta a liberdade formal necessária para desconstruir todas as convenções interiores ao género e encenar um dos filmes mais hipnóticos do ano.

5. «Maria Madalena», de Abel Ferrara

É um dos filmes mais espirituais da década. Uma história de fé desconstruída pelo desencanto da actualidade. Forest Whitaker é assombroso.

6. «Match Point», de Woody Allen

O regresso de Woody Allen aos grandes filmes, depois de um punhado de filmes muito interessantes, mas menores na sua carreira. Quem diria que era preciso Allen sair da sua Nova Iorque para se reencontrar?

7. «Em Paris», de Christophe Honoré

Foi um bom ano também para o cinema francês (relembremos ainda o muito bom Le Temps Qui Reste, de Ozon), em particular para esta pérola sobre a amizade de dois irmãos, com a sobriedade necessária para retratar uma tragédia, mas com a liberdade formal (sinais de Nouvelle Vague - enfim, Godard, Rivette, ...) possibilitando um encantamento irresistível sobre os lugares, as personagens e a errância dos seus dilemas.

8. «Babel», de Alejandro González Iñárritu

Filme portentoso sobre a incomunicabilidade do mundo. Um filme fundamental de 2006 e que não podia deixar de figurar nesta lista.

9. «World Trade Center», de Oliver Stone

Um comovente reencontro com Oliver Stone e (através dele) com os trágicos acontecimentos vividos em 11 de Setembro de 2001, no World Trade Center. Um filme que dignifica a memória daqueles que perderam a vida nesse dia, mas que sustenta também uma invulgar força anímica para quem os ficou cá a chorar.

10. «Nada a Esconder», de Michael Haneke

Sabendo que se fala tanto (eu incluído) na indisponibilidade do olhar do espectador face às imagens que recebe, Haneke filma este magnífico Nada a Esconder com a subtileza dos vários olhares que o percorrem. É um filme sobre o(s) olhar(es) mas também sobre as imagens e as suas várias decomposições.

30.12.06

Balanço do Ano (Miguel Galrinho)

2006 foi, de uma forma geral, um muito bom ano de cinema, sobretudo pelas cinco obras-primas que estrearam nas salas, e que se encontram nos cinco primeiros lugares deste top. Este, tem o valor efémero de qualquer top, dependendo muito do estado espírito em que me encontro quando o elaboro. De qualquer forma, penso que deve haver uma divisão: os cinco primeiros lugares nunca se alteraríam, na medida em que nenhum outro filme poderia substituir qualquer um desses, apesar da ordem entre eles poder variar. Exceptuando o primeiro lugar: Munique, de Steven Spielberg, por uma razão: trata-se, para mim, da obra máxima do realizador e, como tal, de um dos grandes filmes da História, pelo que nunca abandonaria o lugar em que se encontra neste ano cinematográfico. O resto do top é incerto, havendo outros filmes que lá podiam figurar: Maria Madalena, de Abel Ferrara; Infiltrado, de Spike Lee; A Prairie Home Companion - Bastidores da Rádio, de Robert Altman; ou 007 - Casino Royale, de Martin Campbell.

1. Munique, de Steven Spielberg
2. Babel, de Alejandro González Iñárritu
3. The Departed - Entre Inimigos, de Martin Scorsese
4. A Senhora da Água, de M. Night Shyamalan
5. Uma História de Violência, de David Cronenberg
6. Match Point, de Woody Allen
7. Ninguém Sabe, de Hirokazu Kore-eda
8. A Dália Negra, de Brian De Palma
9. World Trade Center, de Oliver Stone
10. Miami Vice, de Michael Mann

Pela negativa (não falarei os piores do ano, até porque tentei evitá-los) devo referir que O Novo Mundo, de Terrence Malick, foi talvez a maior desilusão que alguma vez tive numa sala de cinema, já que não consegui encontar no filme o encantamento do sublime Thin Red Line (um dos grandes filmes da década passada), mas apenas o mesmo registo usado de forma redundante e distanciada das suas personagens. Destaque-se ainda pela negativa Um Ano Especial, que vem demonstrar (novamente) que Ridley Scott é um realizador desequilibradíssimo, capaz do melhor e do pior, e neste filme a única coisa que consegue é uma comédia com gags sem piada, intercalada com um drama sem construção de personagens e um romance banalíssimo.

Num ano fraco em comédias, sinto-me obrigado a referir um filme francês que passou bastante despercebido: Faça Favor..., de Pierre Salvadori, que apesar de ter uma duração ligeiramente excessiva, tem também grandes interpretações (em especial de Daniel Auteuil) e um argumento engenhoso capaz de construir muito bem personagens, o que lhe permite tornar credíveis as situações mais absurdas. Para finalizar, devo reconhecer que apesar das minhas fracas expectativas, The Prestige - O Terceiro Passo marca o regresso de Christopher Nolan à boa forma depois do desinspirado e desequilibrado Batman: O Início. Mesmo com uma narrativa com algumas banalidades, a realização de Nolan permite criar ambientes soturnos e de suspense exemplares, enquanto que a desordem (mas uma desordem ordenada) cronológica narrativa é essencial para a construção dos mistérios e até para a evolução psicológica das personagens. O que se podia tornar num banal blockbuster com realização e montagem descuidadas (como no seu filme anterior), acaba por ser um interessantíssimo exercício de estilo, mesmo que imperfeito, e com marca autoral bem presente.

Esperemos um grande ano cinematográfico para 2007!

Os Melhores do Ano (Filipa Lopes)


1 - Munique, de Steven Spielberg
2 - Uma História de Violência, de David Cronenberg
3 - The Departed - Entre Inimigos, de Martin Scorsese
4 - World Trade Center, de Oliver Stone
5 - Match Point, de Woody Allen
6 - O Segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee
7 - O Tempo que Resta, de François Ozon
8 - A Prairie Home Companion - Os Bastidores da Rádio, de Robert Altman
9 - 007 - Casino Royale, de Martin Campbell
10 - Voltar, de Pedro Almodóvar

A Persistência da Memória

O primeiro filme da famosa Trilogia das Cores, de Kieslowski - Azul - tem como tema a liberdade, que aborda de forma bastante curiosa: uma mulher, após perder o marido (compositor mais famoso da Europa) e a filha num acidente de automóvel, tenta ultrapassar o sofrimento desligando-se de todas as recordações que tinha da família e evitando laços afectivos, procurando um sentimento de total liberdade. Ou, por outras palavras, tenta lidar com a dor da perda abandonando o espaço físico que habitava, na esperança de que a memória (e mesmo acontecimentos presentes, com o recurso constante à música que compunha) não persistisse em trazer-lhe recordações do marido. Desta forma, pensava, poderia atingir a liberdade que desejava. Mas a liberdade não será às vezes a maior das prisões?

Uma obra de arte absoluta, construída numa simbiose perfeita entre imagem e som, em que cada silêncio ou cada fragmento de música que é ouvido pode ter a mais poderosa função dramática.

29.12.06

Melville - Take 1

NEGRO
RADICAL
CINEMA PURO

25.12.06

Um ano de cinema em Portugal - O Pior (III)

O ACADEMISMO

2006 veio reforçar a tendência para uma certa academização do cinema. Convém começar por explicitar o que se entende por academismo neste contexto. Pretende-se nesse termo condensar uma certa forma de ver o cinema como não mais que um veículo para relatar factos, ficcionais ou reais. Partimos assim de uma história, à qual há vezes a dificuldade em chamar argumento, dada a sua esparsa densidade. Nessa história, existem figuras com nomes, que não passam de representações icónicas, seja de sentimentos ou atitudes, muitas vezes traduzindo estereótipos de diversas ordens. A essas figuras falta qualquer dimensão humana (ou outra) para que se possam chamar de personagens. Pegando nesta história, passa-se então ao processo de a converter para imagens, alocando para tal amiúde vastos meios e produção. O resultado é muitas vezes um conjunto de imagens bonitas (às vezes nem isso), musicadas agradavelmente (dependendo dos gostos) mas irremediavelmente comprometido pela fina espessura do material original aliada à completa falta de visão artística do empreendimento. Uma secura criativa marca visual, narrativa e, porque não dizê-lo, espiritualmente estes objectos anónimos e unidimensionais, que vivem muitas vezes de boas intenções e bons sentimentos em detrimento de bom cinema. Memoirs of a Gueisha, North Country, Poseidon, Walk the Line são apenas alguns exemplos.

Dir-se-à, com propriedade que este “cinema” sempre existiu e não vem daí mal ao mundo. Se isto é em parte verdade, não é menos verdade que 2006 vem acentuar esta tendência, e que se anteveêm nos céus sinais preocupantes. Um desses sinais é a forma como realizadores indiscutivelmente talentosos, alguns até com uma distinta marca autoral, aceitam colocar os seus préstimos ao serviço de tais vacuidades artísticas. Um outro, talvez ainda mais sintomático do estado das coisas, é o facto de cada vez mais sectores tidos como vanguardistas caucionarem estes objectos com rasgados e surpreendentes elogios.

Ridley Scott estreou Um Ano Especial, um exemplo de boas intenções traduzidas num tratamento estereotipado de situações e sentimentos apresentados numa bandeja de anonimato visual e indigência narrativa. Tudo pronto a servir, sinal porventura de dias em que o espaço e sobretudo o tempo para a digestão do alimento intelectual deixou simplesmente de existir.

Mas mais marcante é, contudo, o caso de The Queen. Trata-se de um pretenso estudo sobre o peso da realeza e os seus costumes anacrónicos centrado na figura de Isabel II aquando da morte da Princesa Diana. Na realidade, não passa de uma colecção de figuras estereotipadas, desde o Príncipe Consorte arrogante e rabujento a um Tony Blair com o carisma de um nabo mal cozido, passando por uma esposa histérica que debita sound bytes anti monárquicos ou um Príncipe Carlos retirado de uma qualquer grupo de saltimbancos afectados. Decorado por infindáveis imagens de arquivo da Princesa Diana, esta colecção de figurinhas é servida num argumento nada trabalhado, a que apenas escapa a figura da própria Isabel II, por mérito exclusivo da interpretação de Helen Mirren. Stephen Frears é indiscutivelmente um realizador aclamado e, gostando mais ou menos de alguns ou de todos os seus filmes, é alguém a quem se reconhece uma visão própria e um modo de fazer cinema. Como pode um objecto que em nada se distingue de um banal drama televisivo sobre a realeza ostentar a sua assinatura tem tanto de preocupante como de enigmático.

Um ano de cinema em Portugal - O Pior (II)

DEGRADAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE EXIBIÇÃO PÚBLICA


Acompanhando a degradação da oferta esteve a deterioração das condições de exibição nas salas. A pequenez da visão do empresário de cinema nacional revela-se mais uma vez em todo o seu esplendor. Perante a diminuição do número de espectadores e consequente redução de receitas, a política é cortar a direito, dispensar quaisquer custos de manutenção e reduzir o pessoal ao mínimo. Projecções no formato errado, microfones na tela, desfocagens, lâmpadas gastas, cadeiras desconfortáveis, cópias degradadas, falhas de som. Enfim, um rol extenso de problemas que quem frequentou as salas no ano transacto certamente sentiu na pele (ou nos olhos) e que se acumulam perante a passividade alarve dos exibidores. A cereja no topo do bolo desta política é a concentração da venda de bilhetes e consumíveis alimentares (pipocas, refrigerantes, cachorros, gelados e afins) num único lugar. Ir ao cinema é, afinal, o mesmo que ir ao café. Que nos espera em 2007? Talvez a exibição de filmes no Continente.

Um ano de cinema em Portugal - O Pior (I)

EXCESSO DE ESTREIAS

Para quem ainda se lembra, e não é necessário recuar mais do que meia dúzia de anos, o número de estreias semanais em Portugal raramente ultrapassava as três. As queixas por parte da elite cinéfila eram grandes, reflectindo a reduzida oferta para além dos assim chamados blockbusters. A programação, com pontuais excepções além dos cinemas King e Nimas, era caracterizada por uma oferta que pouco mais fazia que reflectir as cadeias de transmissão do marketing internacional.

Foi assim com regozijo geral que foi visto o aumento para mais do dobro do número de estreias médio que ocorreu há cerca de dois anos. O que este contentamento obnubilou, como o demonstra o panorama consolidado actualmente, é que este aumento de estreias é feito exactamente pelos mesmos programadores que interpretam o seu trabalho como o de (maus) tradutores de nomes de filmes, sinopses e cartazes. Somos confrontados por vezes com um número de estreias semanal a aproximar a dezena, mas entre as quais encontramos filmes de qualidade duvidosa, em muitos casos lançados directamente em video nos países de origem.

As distribuidoras nacionais, em muitos casos as mesmas empresas que detêm as salas de exibição, alargaram o número de estreias numa medida puramente contabilistica para preencher o crescemente número de espaços disponíveis. Na sua esmagadora maioria, os departamentos de distribuição, desenvolvimento e promoção dos filmes são constituídos por gente que, além de incompetente, tem a visão estratégica de um funcionário público do governo de Salazar. Revelam uma preocupante incapacidade inata para distinguir as diferenças entre as propostas dos diversos filmes e as distinções que consequentemente devem marcar a sua introdução no mercado. As salas de cinema passaram assim a ser contentores do lixo destinados a limpar os catálogos das compras por atacado que os distribuidores nacionais fazem nos mercados de cinema.

Com uma média de cinco ou seis estreias semanais filmes tão diferentes mas relevantes como A Scanner Darkly ou American Dreamz não encontram lugar no mapa de estreias, ao passo que obras como Fauteuils d´orchestre ou Infamous são exibidas num anonimato que parece imitar um espião de Le Carré.

Muito se escreve, inclusivé na blogosfera, sobre a baixa exigência intelectual do espectador português. Mas, em abono da verdade e passando a sempre redutora generalização, o distribuidor nacional não lhe fica atrás.

Natal com emoção



Na noite de consoada, George Bailey vê-se confrontado com uma situação devastadora e decide por fim à sua vida. É então que algo superior intervém e revisitamos toda a sua existência na pequena terra onde nasceu, toda ela recheada de sonhos para sempre adiados pelo peso da responsabilidade que assumiu ainda muito jovem. Quando se preparava para viajar e estudar na universidade é confrontado com a morte do seu pai e a necessidade de retomar um trabalho que nunca desejou na sua companhia de empréstimos. Toda a sua vida é marcada por uma série de eventos que privam George das suas idealizações pessoais em prol do que considera correcto. Vemos o seu antagonista, Mr.Potter, um avarento milionário que tenta por fim à sua pequena empresa e vemos também a pureza sentimental de Mary, a mulher por quem se apaixona. E depois do momento de desespero vemos também como seria a vida destas e tantas outras pessoas caso a bondade e altruísmo de George não existissem em Bedford Falls. E na importância da vida de um só homem, e no buraco que a sua ausência provoca, é espelhada toda a verdade da época natalícia. Não é decerto por acaso que It’s a Wonderful Life é um dos filmes tão amado e recordado, nesta e em todas as outras alturas, uma comovente e inigualável história de Frank Capra com uma interpretação arrebatadora de James Stewart, que conjura como ninguém o espírito único do homem comum. E sessenta anos depois, continua a ser uma obra não só inspiradora como também de extrema importância. Isto porque nesta altura de tremenda comoção e oportunismo comercial, e do cinismo que tal invoca, é usual nos esquecermos da verdadeira e inabalável essência do Natal. No entanto existem certos objectos, de arte ou de tradição, que nos recordam dessa magia. It’s a Wonderful Life é um deles.

24.12.06

Natal sem emoção


Haverá melhor altura do que esta para ver ou rever os clássicos natalícios? Neste Natal, a escolha foi ver esse grande clássico, que já originou muitos remakes, chamado Miracle on 34th Street, realizado por George Seaton. Porém, comparar esse filme com outros clássicos e obras-primas absolutas (por exemplo, o sublime e intemporal It's a Wonderful Life, de Frank Capra) é comparar o incomparável. Miracle on 34th Street começa bem, desenvolvendo uma relação entre um homem que afirma ser o Pai Natal e uma menina que, pela educação que teve, não acredita em fantasias desse género. No entanto, todo o potencial de relações humanas que poderiam ser desenvolvidas a partir dessa relação, assim como as questões que poderia aprofundar (a importância da fé, da imaginação...), é desperdiçado quando George Seaton se lembra de esquecer tudo o que construiu e gasta todo o tempo, a partir de certa altura, em discussões de tribunal que tratam de provar objectivamente se aquele homem é, de facto, o Pai Natal. Tentando, no final, voltar às relações humanas, todas as questões levantadas acabam por ser feitas de forma superficial e sem o mínimo de genuinidade ou sentimento. Existirá Natal com menos emoção?

18.12.06

O poder arrebatador das imagens

Foi precisamente há 31 anos que Barry Lyndon estreou nos EUA. Apesar de, na altura, ter dividido a crítica, é hoje reconhecido como um dos grandes dramas históricos do cinema, que Martin Scorsese declarou ser o seu filme favorito de Kubrick e do cinema americano.

Mesmo com mais de três décadas, o poder dramático e a brutalidade do impacto mantêm-se, resultante da perturbante frieza das emoções das personagens que habitam o filme, enquanto a direcção fotográfica continua a ser uma das melhores de sempre.



Veja-se, por exemplo, a primeira cena aqui colocada, dos momentos mais belos de que há memória, e de uma perfeição técnica (repare-se no movimento de câmara e zoom in iniciais) e artística absolutas. Uma história de amor contada sem palavras serem ditas por qualquer um dos amantes: temos apenas a profundidade das trocas de olhares, conjugados com a beleza da encenação e com o sublime segundo andamento do Trio com Piano de Schubert em Mi bemol.



Vale ainda a pena, em particular, rever vezes sem conta a segunda cena, em que Barry Lyndon vê morrer o filho, ficando, então, sem herdeiros. Uma questão: haverá melhor exemplo de como a montagem é, acima de tudo, um meio dramático? Sabendo (porque nos é contado em voz-off pelo narrador) que o filho de Lyndon irá morrer, haverá forma mais brutal de encenar essa morte do que cortar bruscamente as lágrimas de desespero de um pai para o funeral do filho? Mais um exemplo de perfeição técnica: na realização, na montagem, na fotografia, na utilização da música.

Um dos melhores filmes de sempre!

17.12.06

5 grandes filmes sobre...

... a Incomunicabilidade

Babel (2006), de Alejandro González Iñárritu

The Sixth Sense (1999), de M. Night Shyamalan

Le Mépris (1963), de Jean-Luc Godard

Tystnaden (1963), de Ingmar Bergman

L'Eclisse (1962), de Michelangelo Antonioni

11.12.06

Histórias de Violência




Numa altura em que os franchises cinematográficos estão cada vez mais a ganhar um lugar na indústria (sobretudo nas sinergias que se conhecem entre o cinema oriental e o americano, nomeadamente no terror), é fundamental definirmos a natureza deste The Departed. Em boa verdade, não se trata de mais uma transposição mais ou menos banal dos meios de produção de um cinema para o outro. Trata-se, sim, do cumprimento da premissa central deste tipo de dispositivos. Isto é: refazer uma história. Ou, para sermos mais tradicionais: recontar uma história. Para todos os efeitos, as histórias sofrem remakes constantes com corpos e lugares diferentes (se Jurassic Park pode ser lido como o revisitar do conto de Frankenstein, também o mais recente Happy Feet pode ser encarado como o refazer da história do Patinho Feio). De facto, The Departed pode e deve ser olhado com esta liberdade formal e dramática, com a abstracção suficiente para percebermos como a mesma história originou filmes tão distintos.
De facto, olhando para Infiltrados e para este The Departed, facilmente percebemos como as sinopses são sempre fracos elementos de caracterização de uma obra. A história é a mesma, mas os pontos de vista são diferentes. A Scorsese interessam-lhe os dilemas melodramáticos que surgem da colisão de pessoas divididas pelas suas opções de vida, mas unidas na sua mais íntima orfandade. Recordo-me da personagem de Leonardo DiCaprio (o melhor actor da sua geração?), um homem que, algures na sua mistura profissional de identidades (é agente infiltrado), esqueceu-se da sua. Na sua errância, procura apenas matar a sua última identidade para poder renascer de volta para a sua vida (haverá algo mais trágico do que esquecermos a verdade da nossa própria identidade?).
The Departed é um filme que recupera uma dialéctica já encenada de forma magistral este ano por outros dois objectos notáveis (Munique e História de Violência). De facto, Scorsese encena-a como se ambas fossem vectores contraditórios de um mesmo corpo (de forma quase trágica, a identidade de cada um também se constrói da nossa relação com a violência e as suas múltiplas interacções). É fundamental sabermos que a violência não existe apenas sob a forma de uma bala a rasgar o tecido de um corpo: ela existe também no rosto de Nicholson e na sua solidão irremediável, confinado a relações transitórias, encontrando um sentido nos filhos que adopta na rua; e também sexual, no triângulo amoroso em que os seus protagonistas se infiltram na intimidade uns dos outros. E a presença subtil mas, ao mesmo tempo, tão forte de uma mulher (Vera Farmiga) nos dilemas centrais do filme, introduz também uma fascinante perspectiva feminina que raramente encontramos em Scorsese. De facto, se existe um lado masculino muito forte nos conflitos morais e bélicos que se desenham neste The Departed, ao seu lado (como se fosse um cheiro suave mas decisivo) a presença de um ponto de vista subtilmente feminino, acaba por converter um conto de armas, polícias e ladrões, numa trágica história de amor. E, como a violência, também o amor existe em todos os seus detalhes. Sem hesitações: uma das grandes obras primas dos últimos anos.

4.12.06

A montagem é uma opção moral



Algures na aridez de Marrocos, ela leva um tiro e desespera um pequeno grupo de turistas, durante uma viagem de autocarro. De onde veio esse tiro? A lógica física obriga-nos a uma resposta simples (vendo o filme, sabemos quem dá o tiro), mas a lógica cinematográfica que Iñárritu propõe parece-me mais interessante. Isto é: percebermos que qualquer acto que tomemos terá consequências no mundo. E sabermos de onde veio o tiro não será tanto uma questão física, quanto cinematográfica ou até mesmo moral. A resposta estaria numa das outras histórias narradas neste magnífico Babel. O filme, tal como Iñárritu o constrói, está agora mais próximo de uma lógica de filme-mosaico do que o primeiro Amor Cão (mais fragmentado e difuso), totalizando um todo que é bem superior à soma das suas partes.
As personagens parecem estar perdidas numa tragédia errante sem reversibilidade aparente (a menina japonesa com o olhar revoltado, destinada a ouvir o silêncio ensurdecedor de um mundo que lhe fôra vedado, ou mesmo uma senhora mexicana com problemas em estabelecer uma identidade geográfica no país onde vive há 15 anos). A incapacidade dela em ouvir não será uma mera casualidade (Iñárritu merece-nos mais respeito intelectual do que isso), mas sim uma poderosa metáfora sobre a incapacidade de comunicarmos e estabelecermos o nosso lugar no mundo. Filme político? Claro que sim, mas faz questão de o ser de forma absolutamente lateral (o único vestígio de evidências políticas aparece-nos quando os media anunciam o incidente de Marrocos como um atentado terrorista – curiosa exaltação da verdade).
A verdadeira mensagem política surge-nos de forma quase purista (porque desarmadilhada de artifícios ideológicos), devolvendo o centro do mundo às suas pessoas. De facto, ela ouve tanto como nós. Não me entendam mal, não pretendo ter um discurso pessimista sobre as relações humanas, mas interessa-me, porventura, reflectir sobre a ideia de não sermos nós que não ouvimos, mas sim o mundo que nada tem para nos dizer. E ela, a menina japonesa, quer sentir o direito a ser amada como qualquer um, mas ninguém a parece ouvir (estarão tão surdos como ela?). Olhando para a verdade global destas histórias, apercebo-me que raras vezes o mundo esteve tão bem representado no cinema e, também por escassas oportunidades foi uma montagem de imagens usada de forma tão dramática. Em última instância, a escolha do plano seguinte afirma-se mesmo como uma opção moral. Qual? A de construir um sentido.

3.12.06

Como nos relacionamos com o(s) outro(s)?


Babel é um filme sobre a incomunicabilidade, seja pela incapacidade física de falar, por se falarem línguas diferentes, ou simplesmente porque as diferenças raciais, políticas, sociais, ideológicas, não permitem que seja possível compreender e respeitar o outro.

Babel é, portanto, um filme sobre a forma como nos relacionamos com outras pessoas, e as consequências que resultam da incapacidade de ultrapassar as diferenças que nos separam. Iñárritu explora, pois, as fragilidades e limitações do ser humano, mas também a força das ligações afectivas, que estabelecemos com um pai, um filho, um irmão, um amigo, ou com a pessoa que amamos. Ou ainda: como necessitamos dessas relações e, através delas, reconhecemos (e recuperamos?) a nossa humanidade.

Babel
é, enfim, um filme dolorosamente actual, humano e real, vivido num turbilhão de emoções constante, entre o sofrimento e o desespero (e a esperança?). Uma das experiências mais arrebatadoras que se pode ter numa sala de cinema, e um dos filmes máximos do presente ano cinematográfico.

2.12.06

Babel, de Alejandro González Iñárritu


Quando gestos de liberdade absoluta pairam sobre a prisão total da incomunicabilidade.

Ou como as luzes e as sombras de «Babel» nos deixam quase sem respiração. O último grande filme de 2006!

1.12.06

Um mau ano para Ridley Scott

Com Um Ano Especial, Ridley Scott volta a deixar bem visíveis os seus desequilíbrios enquanto realizador. Max Skinner (Russell Crowe), um homem que só se interessa por fazer dinheiro, recebe da herança do tio (Albert Finney) uma quinta no sul de França. Interessando-se, inicialmente, por vendê-la e fazer dinheiro, acaba por, ao voltar lá, ir revendo em flashbacks alguns momentos que passou com o tio enquanto criança (Freddie Highmore). A ideia inicial fica, aliás, bem explícita e clara a todos, visto que não prima propriamente pela subtileza, sendo martelado cena a cena pelas mais diversas personagens que Max só se interessa por fazer dinheiro, e não por ir de férias ou por se divertir.

Toda a primeira hora do filme é de uma redundância narrativa absoluta, sem qualquer evolução a nível de personagens além do que é apresentado nos primeiros minutos, estando recheada de gags perfeitamente básicos e sem piada, acentuados por tiques de realização descabidos como câmaras aceleradas ou por uma montagem frenética e aleatória de imagens com o objectivo de demonstrar como Max anda perdido. É curioso que se fale, no filme, da importância do timing na comédia. O problema parece-me ser, no entanto, anterior a esse: na verdade, a maioria dos gags não funcionariam nem no momento mais acertado que se possa imaginar. Do ponto de vista dramático, Ridley Scott não está muito interessado na personagem principal: para além de alguns flashbacks pontuais, repetitivos, e de curtíssima duração, a personagem de Russell Crowe não tem muito mais desenvolvimento, e o actor também não consegue fazer grande coisa com os momentos humorísticos que tem à disposição.

Na segunda metade, os gags tornam-se pontuais e os tiques irritantes da realização desaparecem, tentando-se explorar uma relação romântica que, apesar de banalíssima e completamente by the book, não deixa de ser menos embaraçosa do que aquilo que se passou anteriormente. Apesar de alguns pormenores interessantes, como o da carta, o desfecho acaba por ser previsível em todos os aspectos. Esta segunda metade tem, ainda, outros defeitos, como um exagero de personagens secundárias insignificantes, mas supostamente relevantes. E o caso mais flagrante é por demais evidente: a relação romântica secundária que se estabelece em duas cenas de um minuto, terminando numa terceira cena de despedida, roça o patético.

Concluindo, esperemos que Ridley Scott regresse aos grandes filmes com American Gangster, escrito por Steven Zaillian (A Lista de Schindler) e com Denzel Washington e Russell Crowe, porque este Um Ano Especial entra desde já para a lista dos filmes mais escandalosamente falhados do realizador.