30.4.08

Sentir «Blade Runner»

«Blade Runner», a obra-prima que Ridley Scott realizou há 25 anos, encontra-se actualmente em reposição em Lisboa, no seu final cut. Vê-lo projectado num grande ecrã e senti-lo no escuro de uma sala de cinema é um privilégio cinéfilo impagável. E ir revisitar as suas imagens pela milésima vez é sempre um desafio sedutor.

Gosto precisamente de pensar em «Blade Runner» como um imenso território, cheio de ambiguidades e contrastes, que está sempre receptivo a uma visita nossa. Antes da história e das personagens, há uma Los Angeles futurista a ser explorada e isso é o que sempre mais me fascinou e exaltou. É uma Los Angeles desconcertante: há o negrume, há uma chuva ácida que não pára de cair, há o caos urbano e populacional; mas há, também, algo de profundamente aconchegante, intimista e sensual. É um desconcerto arrepiante. Como aquele arrepio que sentimos quando ficamos aconchegados na cama a ouvir a chuva furiosa que cai lá fora! Não há muitos filmes assim, que despertem de forma tão impressiva esta sensação de fusão de mundos.

O desafio mais atraente de «Blade Runner» é este desafio de adaptação, de conhecimento, de percepção. É uma viagem que exige sensibilidade apurada e sentidos bem despertos: para captar as imagens e os sons, para tentar respirar aquele ar congestionado, para experimentar sentir aquela chuva a molhar os nossos rostos, para arriscar cheirar os odores entrelaçados no ar, para explorar aquelas ruas apinhadas de gente das mais diversas proveniências ou os becos mais sombrios e abandonados…

É este, confesso, o desafio que mais me mobiliza. Mas há outros. Muitos outros. Vale a pena, a esse propósito, recordar o que aqui escreveu o Tiago Pimentel em 2006 sobre o original cut.

11.4.08

Solidão Instalada


«Coeurs» afirma-se desde já como um dos mais interessantes filmes lançados entre nós neste paupérrimo início de 2008. Quase cinquenta anos volvidos sobre a estreia da sua obra-prima, «Hiroshima Mon Amour» (1959), o veteraníssimo Alain Resnais decide filmar aqui a solidão não como programa ou percurso, mas como irreversível sentimento instalado. As personagens cruzam-se mas nunca saem realmente do mesmo sítio e surgem no ecrã sem contexto e sem futuro. Vamos percebendo, a cada fotograma que se acumula, que o movimento exterior destas personagens corresponde tristemente a um movimento estático interior.

Mais do que no argumento (que não nos assalta o espírito nem faz a diferença) importa atentar na realização de Resnais, notável a todos os títulos: os planos picados que esmagam as personagens, o posicionamento da câmara na exploração dos espaços que lhes aprisiona o olhar, a ausência de exteriores que as sufoca sem remissão. E a neve, claro, que transforma as personagens em meros bonecos fechados numa redoma em cima de uma cidade, Paris, que nunca vemos realmente. Talvez não seja um filme assim tão distante do abstraccionismo formal presente no genial «L’Année dernière à Marienbad» (1961).

8.4.08

Planeta dos Macacos

Charlton Heston deixou ontem o mundo dos vivos, depois de uma carreira de competência e sucesso no grande ecrã complementada, de uma forma da qual poucas “estrelas” se poderão gabar, com uma participação cívica de monta. Foi, acima de tudo, um lutador pela mais moderna e radical das liberdades – a necessidade de permitir a cada ser humano viver e pensar de forma independente, para além de esquematismos ou conveniências políticas e sociais do momento. A tenacidade com que defendia as suas convicções e a sua forte veia individualista transpiravam nos personagens maiores que a vida que interpretou.

Estava eu lendo várias reacções e artigos sobre a vida e morte desta figura ímpar, quando me aparece no ecrã este obituário. É verdade, antes não tivesse lido. Mas, caído nas areias movediças do lodo, ou se esgravata para sair ou se é engolido de vez. Ainda tentei deixar passar – João, não vale a pena, vozes de burro não chegam ao céu… - mas perante o nível do disparate, a revolta venceu a comodidade do silêncio.

Uma simples busca de cinco minutos no Google e no Youtube permite ao cibernauta curioso que queira saber mais, perceber a coerência das ideias de Heston, a forma como as suas posições sociais e políticas são articuladas e sustentadas em argumentos. Algo que, claramente, o autor do epitáfio acima não se deu ao trabalho de fazer, porventura porque obrigaria a um esforço intelectual um tudo nada superior a traduzir e reciclar notícias sobre rodagens, cartazes e trailers do momento.

Se a falta de curiosidade e ignorância não chocam, a estupidez exercida com um tal grau de altivez não pode deixar de incomodar. Poucas coisas causam mais asco do que ver um rato denegrir a rectidão de um Homem (sim, com H bem grande) ou um cobarde a aproveitar para enxovalhar um morto que mesmo na tumba mexe mais do que ele.

Será que o double-thinking de Orwell já anda por aí? De que outra forma justificar que a inteligência e o argumento passem por imbecilidade e o insulto por heroísmo, como parece acontecer na caixa de comentários do referido post? Ou que o imberbe berrante insulte o activista esforçado? Como explicar que mentiras factuais primárias (a NRA e Heston não deram a vitória a ninguém em 2000 e Heston não mudou de partido “da noite para o dia”) sejam postuladas como verdades intocáveis? Que, cravando um último prego no caixão da decência, um homem – com “h”´s e sabe-se lá mais o quê pequeno – chame fingido ao honesto?

Perante coisas destas, como é que ainda pode haver surpresa perante as lúcidas palavras de José Pacheco Pereira:

“O que se passa é que esse verdadeiro mostruário em linha, feito de mil egos à solta, revela mesmo a nossa pobreza, a nossa rudeza, a falta de independência face aos poderosos, grandes, pequenos e médios, os péssimos hábitos de pensar a falta de estudos e trabalho, de leitura e de "mundo", que caracterizam o nosso "Portugalinho". Nem podia ser de outra maneira. Com a diferença que nos blogues o retrato é mais brutal porque mais arrogante e mais solto, ou pelo anonimato, ou pela completa falta de noção de si próprio de quem, por poder escrever sem edição para os milhões de leitores potenciais da Rede, acha que é crítico de cinema instantâneo, engraçadista brilhante, analista político, escritor genial de aforismos, herói único da denúncia dos males do mundo, e portador de todas as soluções que só não são aplicadas porque os outros, a começar pelo blogue do lado e a acabar no fim do mundo, são todos corruptos, vendidos e tristes.”

As minhas desculpas aos meus colegas de blogue por ocupar tanto espaço com uma questão lateral, pelo menos em primeira análise, à temática deste blogue.

Charlton Heston, descansa em paz.

2.4.08

5... Clássicos Esquecidos

Cross of Iron (Sam Peckinpah 1977)


Midaregumo (Mikio Naruse 1967)


Dangerous Game (Abel Ferrara 1993)


Der Verlorene (Peter Lorre 1951)


Gun Crazy (Joseph H. Lewis 1950)