27.9.06

Pensar e existir



«BLADE RUNNER» - Original Cut

****SPOILERS****

Se não existisse um sentido existencial e trágico nas imagens, «Blade Runner» poderia valer-se apenas da sua estética retrofuturista, sucumbida por uma fotografia soturna que abre espaços ao mistério noir da história e à transcendência artística das suas imagens e do seu imaginário. Vale a pena parar para pensar sobre o peso da palavra imaginário: nela lemos conceitos como imaginação, fictício, utópico. Imaginário poderá ser uma colecção de imagens que sustentam um determinado universo de ficção. E, se alguma vez o cinema atingiu um zénite na gestão criativa das suas imagens, «Blade Runner» foi, seguramente, um desses marcos históricos.

O segredo para «Blade Runner» permanecer intemporal e futurista seja qual for a altura em que o visionemos, tem a ver precisamente com a singularidade do seu património visual, compondo um lugar e um tempo que não parecem pertencer a tempo e a lugar nenhuns. Por um lado, colecciona elementos clássicos da ficção futurista, desde os carros voadores, às grandes estruturas piramidais (algures entre o cinzento-metálico do futuro e a construção egípcia do passado) passando pela evolução da robótica ao ponto de ser possível criar um ser biomecânico, auto-suficiente para trabalhar como escravo nas colónias extraterrestres; mas, por outro lado, o filme mantém uma ligação afectiva e material com símbolos do nosso mundano: os mercados e as praças continuam a lembrar as famosas chinatown, as armas têm um efeito semelhante às tradicionais (evitando criar um imaginário futurista e convencional de armas de raios laser e afins), a própria estilização do filme remonta para os film noirs dos anos 40, património do nosso passado. Algures entre a tecnologia do futuro e a plasticidade do passado, «Blade Runner» encontra um lugar que é menos temporal e mais cinematográfico. Dito de outra forma: o filme acaba por não pertencer a nenhum tempo em concreto, assemelhando-se mais a um estado de sonho, a um sonambulismo permanente algures entre o real e o quimérico. A entrada de «Blade Runner» (o plano aéreo de Los Angeles) introduz-nos à sua cenografia negra e operática, como se o mundo estivesse à beira de um fim ainda incerto (no final, sabemos, Roy morre com as suas lágrimas à chuva, e o filme renasce para um novo dia, acompanhando a viagem de Deckard e Rachel por paisagens montanhosas, perseguindo uma jornada também ela incerta... vemos o sol pela primeira vez).

O humano e a máquina

Os Replicantes de «Blade Runner» são robôs com tecido orgânico e aparência humana, e são utilizados no espaço extraterrestre para trabalharem como escravos nas colónias. O planeta Terra está transformado num unificado terceiro mundo, onde habitam apenas os que não têm condições financeiras e médicas para viajarem até uma das colónias. Algures numa dessas colónias, um grupo de Replicantes revolta-se e foge para a Terra, na esperança de resolver um problema que pensávamos ser exclusivamente humano: o medo consciente da morte. Neles (nos Replicantes) revemos os nossos receios e utopias condensados nos seus corpos, os seus desejos de vida, de memórias... de existirem.

É absolutamente fundamental percebermos que os implantes de memórias lhes davam uma característica humana incontornável: a capacidade de compormos as nossas próprias emoções em função de uma educação existencial adquirida com os anos e com as experiências. E essa é, no limite, a questão nuclear de «Blade Runner»: ganharmos consciência dos feitos fascinantes do nosso passado e compormos constantemente sonhos para o futuro. E é inevitável que esses sonhos se mantenham, até certo limite, inconcretizáveis. Faz parte da nossa condição, termos sempre um objectivo a atingir, um sonho que, na sua mais bela utopia, é impossível de ser tocado. O nosso humanismo completa-se nessa impossibilidade.

E Roy percebe a beleza trágica dessa impossibilidade no final, quando resume a Deckard os grandes momentos que viveu na sua curta vida. Ele viu coisas que mais ninguém acreditaria, visões assombrosas e sublimes, únicas na sua existência. E tudo isso se perderá na memória do tempo, não apenas porque ele se prepara para morrer, mas, acima de tudo, porque ganhou consciência humana do valor imenso daquilo que viu (e que, agora, se prepara para perder). Talvez dizendo-o a alguém, esses momentos perdurem de alguma forma. Talvez fosse isso que Roy queria no final: alguém a quem transmitir as suas memórias. É nessa carência que nos revemos, na necessidade de perdurarmos a nossa existência para além da nossa vida, como se fossem, de facto, conceitos distintos. E a arte não é isso? A imortalização de uma imagem, de uma ideia, de um pensamento. Com a morte de Roy vem a catarse de Deckard, a possibilidade de continuar a sua história de amor com uma Replicante cuja vida foi poupada. Rachel era especial, não tinha data especificada para terminar a sua existência e Deckard sabia disso. Ambos partem numa nova jornada romântica com toda a insegurança tão característica do humano: eles não sabiam quanto tempo ainda tinham juntos, mas de facto, alguém sabe?

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