Por vezes é complicado tentar descortinar as razões pelas quais um determinado filme fica fora de um plano de estreias das distribuidoras. Mais complicado ainda quando se trata de uma obra de um dos mais aclamados dramaturgos dos nossos tempos. Não conquistou quaisquer prémios, não ganhou avultadas quantias nas bilheteiras nem foi o maior “querido” da crítica especializada americana. Factores que parecem ser suficientes para o descartar do mapa de estreias em Portugal ou para o atrasar indefinidamente até cair num pérfido esquecimento e precipitar um lançamento em loja. Irá ser uma das películas apresentadas fora de competição no Festival do Estoril este mês mas é uma acção evasiva ainda que louvável, tendo em conta que
Redbelt de David Mamet é um dos grandes filmes (não) estreados em 2008 e uma das mais luminescentes surpresas do ano.
Conhecido maioritariamente pelo seu trabalho nos palcos enquanto famoso encenador e pelos textos tremendamente cerebrais e intelectualizáveis, o primeiro choque com que somos confrontados em Redbelt é a simplicidade e transparência que se abate em cada frame. Na sua essência é um filme de luta, uma actualização contemporânea do mito do samurai. Acompanha Mike Terry, um descomplicado treinador de jujitsu urbano, numa série de problemas que o fazem reavaliar ou reforçar a posição que assume na sua própria vida. Tudo começa quando numa noite como todas as outras, uma mulher em estado de pavor entra pelo seu dojo adentro e acidentalmente, em reacção a uma aproximação inofensiva de um dos discípulos de Terry, dispara uma arma carregada sobre uma das vitrines.
Tudo a partir daqui se desconstrói. A vida simples de Terry é posta em causa, inicialmente e só aparentemente, a seu favor. Defende um célebre actor numa luta de bar induzida pelo álcool e, por fazer nada mais que aquilo em que acredita, é pela primeira vez recompensado, algo que nunca desejou por nada que tivesse concretizado. Mas rápido o sonho impensado de prosperidade também se desmorona e Mike Terry é basicamente levado a entrar num combate, algo que sempre desprezou pelo puro desrespeito e falta de integridade no uso de métodos ancestrais de defesa e concentração meditacional para proveito monetário. Mas fá-lo porque não lhe resta outra solução para defender a sua honra e os princípios que regem e edificam a sua vida.
É aqui que é materializado o conceito de samurai, transposto para uma realidade palpável e quotidiana, de desilusão no mundo efémero que nos rodeia e nos atalhos comprometedores da integridade e da moralidade que todos seguimos para alcançarmos os nossos objectivos. Mas o único objectivo de vida de Mike Terry é a verdade, e nada mais lhe é precioso. Por isso mesmo é visto pelos seus antagonistas como um falhado que nada substanciará, desde um desprezível produtor de cinema à própria mulher que tanto ama. Chiwetel Ejiofor é de uma serenidade reveladora e ao longo do filme vai-nos mostrando a verdade em cada acto e palavra que define não só a sua personagem mas a filosofia de vida que adopta. Raramente se vê uma interpretação tão poderosa, valorosa e verdadeiramente transcendente num receptáculo tão silencioso e despretensioso. Quem vê Ejiofor a ultrapassar os limites do significado da definição de actor, pergunta-se como é possível continuar a não dar o merecido destaque a um actor que, na sua discreta excelência, tem mostrado tudo o que pode dar.
Não desmerecendo o elenco secundário, que inclui pessoas tão díspares quanto Tim Allen e Rodrigo Santoro, onde Mamet revela a sua destreza enquanto dramaturgo. Basta olhar para a personagem transfigurada e multidimensional da também sempre perfeita Emily Mortimer. Mal irrompe pela história, reconhece-se imediatamente o seu tumulto e o medo que exala por todos os poros, mesmo quando posteriormente se mostra enquanto uma profissional e eximia advogada. A relação não-amorosa travada entre Ejiofor e Mortimer é um dos prodígios cinematográficos do ano e de uma arrebatadora significância, tal como é a inesquecível encenação do cru e derradeiro confronto humano. Porque tal como
Redbelt em si, guarda importantes segredos por detrás da sua enganadora simplicidade. Neste aspecto, e em muitos outros, esta obra de David Mamet é uma memorável e imensa lição de vida que raramente se vê reflectida com tamanha genuidade e certeza em cinema. Assim se recusa em cair no esquecimento.