21.7.07

Stromboli, Terra di Dio


Independentemente dos seus méritos artísticos, Stromboli é um nome incontornável na historia do cinema. Primeiro filme da dupla Roberto Rossellini e Ingrid Bergman, viria marcar um casamento artístico que mimetizou a paixão na vida real, e que se consumou em mais seis filmes. A história é por demais conhecida: Bergman, à data a maior estrela de Hollywood, vê Roma, Città Aperta, Paisa e Germania Anno Zero e escreve a Rossellini dizendo que pretende trabalhar com ele sem condições. Conhecem-se apaixonam-se, ambos deixam os respectivos casamentos gerando o escândalo nos Estados Unidos e o deleite da imprensa cor-de-rosa.

À parte preferências pessoais – confesso que as minhas recaem sobre o avassalador Europa 51 que lhe sucede - é impossível ficar indiferente perante Stromboli. A imediata referência à “magia do cinema”, sempre tentadora, é aqui um caminho de equívocos. Porque, se existe uma presença quase opressora de forças sobrenaturais a dominar qualquer sala em que se projecte Stromboli, ela nada tem de mágico.

Apesar de escondida durante quase todo o tempo, a verdadeira motivação é explicitada logo na primeira imagem. Junto com um gigantesco “STROMBOLI” surge uma espécie de sub-título – a tal “TERRA DI DIO” que complementa o título original. Os dois substantivos, a “TERRA” e “DEUS”, estipulam assim, desde o inicio, dois dos três pilares que vão suportar toda a obra. O terceiro elemento é, naturalmente, Ingrid Bergman, ou Karin Jones, a mundana, a estrangeira, no sentido mais radical do termo àquela TERRA, cuja presença despoleta toda a cadeia de eventos. É da fricção constante de Karin (Ingrid) com a TERRA que vive Stromboli, e da omnipresença não consubstanciada de forças que parecem prendê-la a um lugar que, fisicamente, faz tudo para renegar. Essa presença domina o ar, os elementos, a sala de cinema, mas é sobretudo interior ao personagem – e interioriza-se no espectador, daí o incómodo que partilhamos com Karin – e tem tanto de elusivo como de real na forma como se sente cá dentro e na sua dimensão de desconhecido incontrolável.

Ao ver o filme pela primeira vez senti algo que identifiquei como uma empatia pela forma como Karin reagia perante a primitividade da ilha e as reacções dos seus habitantes. A dimensão do desconforto não podiam porém ser justificadas por tão pouco. Só dias ou talvez semanas depois me apercebi do que se tratava. Partilhei pois o incómodo de Karin, mas não era a fricção exterior que me perturbava, mas a convulsão interior. Aquela presença espiritual, ao mesmo tempo ligada a mim e exterior a mim. Só um realizador tocado pela Graça poderia conseguir tal efeito: consubstanciar DEUS no interior de um espectador ateu. E só uma actriz divina conseguiria ser o veículo de tal mensagem. Acredito que apenas Rossellini e Ingrid Bergman poderiam tê-lo conseguido. Acredito que, se DEUS existe, então a Graça juntou-os neste filme. E acredito que, se existem manifestações divinas na Arte, então STROMBOLI é o seu exemplo cinematograficamente mais relevante.

É impossível terminar sem referir os últimos quinze minutos de filme, quando Karin parte na mais desesperada das fugas. A erupção do vulcão que quase provoca a sua morte física é a chave para a revelação, para um novo mundo diante dos seus olhos. A cadeia inverte-se, são agora os elementos, a TERRA, que ditam a transformação de Karin. E é ela quem pronuncia, repetidamente o nome que a tudo dá sentido –“ DEUS, DEUS MEU, DEUS MESICORDIOSO!!”. Tal como Karin, só aqui o espectador percebe toda a dimensão do que viu – e sentiu – antes. As palavras serão sempre poucas para descrever a transcendência destes momentos e por isso aqui termino em silenciosa reverência.

1 comment:

Anonymous said...

A relação deles e a forma como ele a filmava são de um poder quase assustador, como se a vida se tornasse cinema e o cinema vida. Pessoalmente prefiro o radicalismo de Europa 51, mas qualquer dos filmes que vi dele com ela são obras marcantes.