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16.5.09

Heresia!


Parabéns a Ron Howard e à equipa técnica de Angels & Demons por terem conseguido transformar o bom entretenimento que Dan Brown escrevera, por mais descabido e over-the-top que fosse o registo adoptado pelo autor, no mais gritante monumento de inverosimilhança e espalhafato dos últimos tempos.

A câmara agonia de tantas voltas que dá, não adopta um ponto de vista mas antes uma dezena deles, o argumento desperdiça todas as boas ideias oferecidas de bandeja pelo romance, alterando-o largamente e convertendo grande parte da intriga num jogo de unir os pontos desprovido de quaisquer significados. Tudo é previsível, requentado e, acima de tudo, há uma noção totalmente errada do ritmo a adoptar, dando um efeito de aleatoriedade à trama que culmina no final ultra-climático que resulta dos mais anedóticos de que há memória.

As queixas de que The Da Vinci Code era maçador e demasiado explicativo foram tidas em conta, sem meio termo: aqui os diálogos do tipo palestra histórica são reduzidos ao mínimo, com algum humor à mistura, e tornam-se tão vazios que quase não se sente a ameaça dos Illuminatti, ponto fulcral de todo o empreendimento...
É, sem dúvida, uma das piores adaptações cinematográficas de um romance, ao confundir simplificação com esvaziamento de conteúdo, para mais sendo servida por uma encenação sem qualquer ideia definida.

No lado "positivo", Tom Hanks regressa mais convincente como Robert Langdon, mas o argumento do filme transforma-o num peão completamente descartável e maltratado no desfecho, quando até havia potencial para uma exploração, simplista que fosse, da sua busca pela Fé. O par protagonista, que no livro ganhava química através das peripécias mirabolantes que sofria, aqui não a tem porque é abruptamente separado a meio do filme. Aliás, interacção é algo que não existe entre as personagens do filme, que derivam ao sabor da incompetência do argumento.

E depois há aquele irrealista Vaticano digital... E uma das piores cenas de tiroteio de sempre... E planos e mais planos de repórteres a debitarem banalidades em várias línguas vezes sem conta... E que dizer da banda-sonora, que deveria vir com um aviso de epicidade, para o espectador mais incauto não furar os tímpanos com o volume dos coros e os agudos e horríveis solos de violino?

Haverá, sem dúvida, objectos muito piores, mas este consegue a proeza de tornar The Da Vinci Code num melhor filme por comparação (e até National Treasure...), o que tendo em conta a base literária era um feito quase impossível. A intriga religiosa é tão confusa, rebuscada e, em última instância, ridícula que, não fosse tão inofensiva e descartável, poderia ofender algumas almas católicas mais susceptíveis... Haveria mesmo necessidade de dois grandes planos do cadáver putrefacto do Papa?

Por mais polémicas religiosas que possa suscitar, Angels & Demons é, acima de tudo, uma heresia contra o Cinema e um explosivo exemplar de anti-matéria artística.

9.2.09

Slumdog Millionaire


Cada vez mais se sente que os Óscares e toda a temporada de prémios que os antecipam são nada mais que um mero concurso de popularidade, que pouco visa a qualidade das obras propostos. O filme com mais prémios ganhos e mais buzz é naturalmente o eleito e perde-se totalmente o intuito da própria diversificação da premiação com Slumdog Millionaire a assumir-se enquanto coqueluche do ano, destinando-se assim a ganhar o Óscar de Melhor Filme no próximo dia 22 de Fevereiro. Conta a história de um jovem muçulmano, feito órfão em terna idade e obrigado a viver numa favela do Mumbai com o irmão que mais tarde se transforma num criminoso de rua. Jamal no entanto sonha apenas com um dia reencontrar a rapariga que com eles cresceu e ao tornar-se num afamado candidato ao prémio máximo do concurso Quem Quer Ser Milionário, espera assim cumprir o seu destino.

É com um extremo travo de desilusão e alguma resignação com que se vê este filme de Danny Boyle, com o intuito inicial de alguma consciencialização, a transformar-se numa história de amor de novela juvenil e com uma total nulidade de ressonância dramática. Tudo em Slumdog Millionaire é superficial, desde a execução vistosa mas cansativa do realizador ao carácter meramente decorativo das personagens e dos actores que a interpretam, mas sobretudo a forma como o enredo se vai descortinando, sempre mecânica, redutora e sem qualquer encanto ou deslumbramento. Chega a ser chocante a visão maniqueísta como Boyle explora a pobreza da Índia e dos seus mais desafortunados habitantes no intuito de uma reacção imediata por parte do espectador, um recurso aviltante e cobarde de aproximação do mesmo à história e que prova que hoje em dia parece ser admissível apelar à mentira, desde que provoque um sentimento efusivo de (falsa) exaltação. Cortes rápidos, música intrusiva e uma quantidade quase insultuosa de melodrama sintético tornam-se cruciais para tornar a experiência mais prazenteira.

Torna-se difícil de acreditar que um filme descartável e indigente como este irá perdurar até na memória dos seus fãs actuais mais acérrimos e se daqui a um ano, e passado todo este entusiasmo postiço, alguém defenderá que Slumdog Millionaire merece figurar no capitulo de história cinematográfica do ano que passou. Enquanto isso assistimos à celebração da mediocridade em prol da solidarização global. That’s showbusiness.

The Wrestler


À semelhança do trabalho magnífico de Bruce Springsteen, também «The Wrestler» se constrói como uma canção que faz o seu herói caminhar à deriva, procurando um refrão que justifique a sua existência e o integre numa dignidade que julgava irreversivelmente perdida. «The Wrestler» é a história de um lutador de wrestling em fim de carreira (alguns diriam, para lá do fim) chamado Randy "The Ram" Robinson a tentar permanecer relevante e a fazer o que mais gosta... até ao momento em que um problema de saúde o leva a repensar o seu modo de vida.


«The Wrestler» é um tour de force, uma história sobre redescobrir quem somos e o lugar que ainda podemos ocupar no mundo, mesmo que o mundo não nos queira nele. Há um realismo inegavelmente comovente na realização de Aronofsky, um compromisso que o cineasta coloca na câmara desde o início, sem receio de procurar a glória e a dignidade em qualquer espaço da vida de Randy, fosse no ringue a conquistar vitórias em lutas previamente encenadas, ou no supermercado a vender carne, seguindo-o e acreditando sempre que a sua história merece ser contada.


É impossível falar de «The Wrestler» sem falar em Mickey Rourke, o actor que Aronofsky queria, desde o início, para o papel e que, inicialmente, por questões comerciais, foi entregue a Nicholas Cage. Mas raras vezes uma personagem encaixou tão bem no actor que a interpretou, de uma forma completamente autobiográfica e com ressonâncias melodramáticas absolutamente devastadoras. Reconhecem-se em Randy, traços das mágoas que Rourke chora do seu passado, da carreira que lhe passou ao lado e que tenta, agora, recuperar.

Os dois redescobrem-se na glória que perseguem e no passado que tentam reviver, num mundo onde procuram o espaço que ainda lhes resta. É essa a comoção de que se falava. A verdade que reaparece por força do ocasional, uma história que merece ser contada ou percebermos que não somos imortais. E, acima de tudo, procurarmos o nosso lugar no mundo e sabermos que, por circunstâncias da vida, ele nunca é o mesmo ao longo do tempo.

14.1.09

A presença de Eastwood

Nada podia ser mais comovente do que o regresso de Clint Eastwood, não só atrás das câmaras no magnífico «Changeling», como à frente (pela última vez?) num dos filmes mais definitivos do cineasta e da sua presença no cinema: «Gran Torino».


Desengane-se quem tenta ver em «Changeling» um filme de época ou um telefilme sociológico que pretende denunciar um caso verídico e todos os organismos sociais e políticos que o integram. É, claro, também sobre isso; é um filme radical sobre o confronto do indivíduo com os mecanismos sociais que contrariam a sua existência, mas é também um filme silenciosamente destruído pela perversidade de uma narrativa que se constrói contra uma mãe que tem de aceitar um filho que não é seu. Mais do que isso, a solene desconstrução da infância angélica e delicada, espelhada no rosto de uma criança que se faz passar por um filho que não é (com uma seriedade que, por vezes, nos gela os sentidos), bem como por outras crianças cuja narrativa parece convocar para o fim de uma inocência irreversivelmente perdida.

Num filme onde a estarrecedora fotografia ilumina cada imagem como se as memórias de uma época fossem, de uma vez só, uma presença irrevogável e uma utopia cinematográfica, é Angelina Jolie que se torna a mais espantosa componente humana e entrega uma das interpretações mais intensas e angustiantes dos últimos anos (e, sem qualquer hesitação, da sua carreira).

De Clint Eastwood, sente-se no filme uma desconcertante serenidade e uma sobriedade clássica na construção das imagens, na montagem e no confronto de planos (porque cada plano encena em si mesmo, a vontade e o destino do realizador e do actor). A profundidade do campo/contra-campo regressa à obsessão milimétrica de «Mystic River», também porque o confronto ideológico exige uma certa dimensão operática que Eastwood tão bem conhece. Mas existe nas imagens também o intimismo e a respiração dramática de «Million Dollar Baby», sabendo que a própria câmara pode desaparecer, a espaços, para se filmar um olhar ou uma lágrima com a mesma tragédia. É um filme infinitamente belo... tão belo quanto triste.



De «Gran Torino», a primeira imagem a reter é a presença incontornável de Clint Eastwood no regresso ao ecrã. E a sua presença não podia ser mais autobiográfica: um velho americano solitário (após a morte da sua mulher) e céptico em relação a todo o mundo que o rodeia. O filme é, de uma certa forma, o testemunho que o cineasta passa ao mundo de toda a sua presença no cinema, uma espécie de justificação assombrosa e artística da sua maneira de olhar o mundo, a vida e os espaços à volta.

Clint Eastwood interpreta Walt Kowalski, um veterano de guerra que não se reconhece na sua família, foge da sua vizinhança, rosna à futilidade angustiante da juventude, faz comentários racistas e chora em silêncio a perda da sua mulher. Aflorado por momentos de humor muito divertidos, o filme esconde uma dor devastadora. Não só a dor de estar sozinho, mas a possibilidade de morrer sozinho. Da tragédia iminente surge, claro, a possibilidade do melodrama. Por outras palavras, é possível reencontrar uma sensação de legado que justifica a vida, a morte, a velhice e a juventude, o clássico e o contemporâneo. E que maior símbolo de legado poderia haver do que o Gran Torino, carro emblemático americano a que o título faz alusão e que simboliza de uma vez só, o ancestral e a imponência.

Existe, de forma nada ocasional, um olhar sarcástico desse ancestral e imponente Clint Eastwood sobre a juventude, seja no seu olhar agastado sobre os piercings ou na recorrência de expressões de indignação sobre os comportamentos dos jovens. Nesta história, um jovem em particular irá produzir um efeito invulgar na narrativa quando a sua vida se cruza com a de Walt e o seu Gran Torino. De facto, existe nessa relação uma espécie de verdade que se distancia da vida e da religião (em boa verdade, a fé é algo que existe, neste filme, como uma crença redescoberta no humano).

Tudo em «Gran Torino» é uma lição de vida, desde a criação de uma família, ultrapassando raças e idades, até à dimensão moral que integra os destinos de cada um. Por razões deontológicas, importa não revelar o desfecho de «Gran Torino», mas é impossível, por cada lágrima que nos escapa, não sentirmos que a presença de Eastwood no ecrã nunca foi tão decisiva e apoteótica. Um pequeno milagre para nunca deixarmos de acreditar no cinema.

10.1.09

Solidão



9.1.09

«Changeling» e os seus vários filmes


Há vários filmes em «Changeling» (Eastwood, 2008), e desses apenas um vale realmente a pena. Os outros perdem-se ou falham por diversas razões ou limitam-se a gerir competentemente as suas informações. «Changeling» surge, assim, como um objecto bom e estimável, mas que é directamente remetido para as margens da obra de Clint Eastwood, onde se situam os seus filmes menos memoráveis.

Em matéria de filmes dentro do filme, há, desde logo, o filme da mãe solitária que vê o seu filho desaparecer de casa. É o melhor dos filmes de «Changeling». Aquele em que emerge um melodrama sombrio e ponderado, esteticamente elegante e sempre triste, muito triste, de uma tristeza imperturbável que se instala delicadamente nas imagens, sem imposições artificiais nem movimentos abruptos. É o filme que ilumina o rosto soturno de Angelina Jolie e é contaminado pela convicção dos seus gestos e pela obstinação do seu olhar. Dir-se-ia que é o filme clássico de «Changeling», pautado por uma perfeita harmonia e equilíbrio entre a composição das imagens e as personagens e emoções que as habitam, numa gestão rítmica sem mácula.

Depois, há o resto. Há o filme policial, em que se investiga o desaparecimento da criança e outras situações relacionadas; há o filme político-social, em que se procura caracterizar a corrupção e a falência moral das forças públicas da Los Angeles dos anos 20 e 30 do século XX; e há, enfim, o filme de tribunal, sobre a Justiça enquanto instituição e enquanto valor intrínseco. Nenhum destes filmes convence totalmente ou impressiona do ponto de vista cinematográfico. Eastwood já fez mais e melhor em cada uma dessas áreas e em «Changeling» não só não traz nada de significativo, como, de um modo geral, simplifica e retira complexidade ao que já mostrou no passado. O filme policial, por exemplo, é totalmente convencional nos seus termos, rotineiro até; longe, muito longe, da complexidade e do peso que habitava cada frame do fabuloso «Mystic River» (Eastwood, 2003). Por outro lado, se o filme de tribunal é relativamente eficaz e bem engendrado — contando, aliás, com a excelente e fordiana personagem do advogado —, já o filme político-social é pouco mais do que medíocre nas suas componentes fundamentais e perde-se numa série de maniqueísmos e de simplismos que prejudicam irremediavelmente a obra.

Em geral, existe também uma construção algo duvidosa de certas personagens, ora reduzidas a meros bonecos despidos de qualquer dimensão humana (de que é exemplo paradigmático o psiquiatra), ora erigidas a meros instrumentos narrativos sem existência própria (por exemplo, a prostituta), ora reduzidas ao mínimo de complexidade (e portanto de interesse) possível (a personagem do polícia ou do pastor, por exemplo). De resto, a experiência cinematográfica surge também prejudicada, a espaços, por certos desvios de tom (como pequenos laivos de comédia de duvidosa pertinência) e por alguns excessos de realismo que contrastam de forma demasiado pronunciada com a subtileza e contenção geral do drama.

Regressando ao delicado melodrama que eleva qualitativamente a obra, não pode deixar de realçar-se o admirável trabalho de representação de Angelina Jolie, brilhante em todas as cenas em que aparece e com uma gestão de emoções verdadeiramente impressionante. Despido de tudo o resto — da política e da polícia, da justiça e da sociedade — «Changeling» consegue ser intimista e vibrante. Angelina Jolie e o drama que solitariamente consegue construir fazem-nos pensar no quão extraordinário poderia ter sido «Changeling» se tivesse ficado apenas com ela.