4.12.06

A montagem é uma opção moral



Algures na aridez de Marrocos, ela leva um tiro e desespera um pequeno grupo de turistas, durante uma viagem de autocarro. De onde veio esse tiro? A lógica física obriga-nos a uma resposta simples (vendo o filme, sabemos quem dá o tiro), mas a lógica cinematográfica que Iñárritu propõe parece-me mais interessante. Isto é: percebermos que qualquer acto que tomemos terá consequências no mundo. E sabermos de onde veio o tiro não será tanto uma questão física, quanto cinematográfica ou até mesmo moral. A resposta estaria numa das outras histórias narradas neste magnífico Babel. O filme, tal como Iñárritu o constrói, está agora mais próximo de uma lógica de filme-mosaico do que o primeiro Amor Cão (mais fragmentado e difuso), totalizando um todo que é bem superior à soma das suas partes.
As personagens parecem estar perdidas numa tragédia errante sem reversibilidade aparente (a menina japonesa com o olhar revoltado, destinada a ouvir o silêncio ensurdecedor de um mundo que lhe fôra vedado, ou mesmo uma senhora mexicana com problemas em estabelecer uma identidade geográfica no país onde vive há 15 anos). A incapacidade dela em ouvir não será uma mera casualidade (Iñárritu merece-nos mais respeito intelectual do que isso), mas sim uma poderosa metáfora sobre a incapacidade de comunicarmos e estabelecermos o nosso lugar no mundo. Filme político? Claro que sim, mas faz questão de o ser de forma absolutamente lateral (o único vestígio de evidências políticas aparece-nos quando os media anunciam o incidente de Marrocos como um atentado terrorista – curiosa exaltação da verdade).
A verdadeira mensagem política surge-nos de forma quase purista (porque desarmadilhada de artifícios ideológicos), devolvendo o centro do mundo às suas pessoas. De facto, ela ouve tanto como nós. Não me entendam mal, não pretendo ter um discurso pessimista sobre as relações humanas, mas interessa-me, porventura, reflectir sobre a ideia de não sermos nós que não ouvimos, mas sim o mundo que nada tem para nos dizer. E ela, a menina japonesa, quer sentir o direito a ser amada como qualquer um, mas ninguém a parece ouvir (estarão tão surdos como ela?). Olhando para a verdade global destas histórias, apercebo-me que raras vezes o mundo esteve tão bem representado no cinema e, também por escassas oportunidades foi uma montagem de imagens usada de forma tão dramática. Em última instância, a escolha do plano seguinte afirma-se mesmo como uma opção moral. Qual? A de construir um sentido.

No comments: