27.12.07

Call Girl - É Cinema, foda-se!


António Pedro Vasconcelos já havia garantido destaque no ano de cinema, ao assinar um interessante artigo, sem papas na língua, onde aproveitava um filme(?) sobre Zinédine Zidane para desmontar toda uma visão das supostas elites nacionais sobre a Arte, neste caso particular o cinema. Excessivo e contundente, como o não podem deixar de ser artigos na linha do direito à indignação consagrado pelo então Presidente da República Mário Soares, APV colocou o dedo na ferida. Teve ainda o mérito de assinar o cognome mais divertido do ano, retratando o (unanimemente endeusado em certos círculos e respectivos apaniguados) Pedro Costa como “cineasta oficial do bairro das Fontaínhas”.

Agora, com o Dezembro prestes a expirar, surge Call Girl, a grande surpresa do ano. Marcado pela citação cinéfila descarada e utilização desavergonhada de calão, trata-se de um objecto de alto entretenimento. Esta deliciosa diversão, crítica ácida e mordaz aos protagonistas públicos e anónimos do Portugal contemporâneo, é uma espécie de acto de fé do realizador no cinema de massas que tanto defende. E nessa vertente é um objecto plenamente conseguido, mostrando que o olhar pessoal não é inconciliável com uma dimensão popular, e que tal é válido também neste Portugal de hoje, porventura o menos cinematográfico dos Países.

Call Girl é, também, um objecto limite, na medida em que todos os personagens centrais assumem uma dimensão de arquétipos no limite do estereótipo, numa estrutura eficaz que reforça o contraste entre uma irrealidade só possível no cinema e o contexto que remete directamente para a mais próxima actualidade, dita real. Todos os protagonistas, irrepreensivelmente dirigidos, arrancam interpretações de gabarito, com Soraia Chaves, Ivo Canelas e mesmo Joaquim de Almeida a atingirem o pico das respectivas carreiras. José Raposo e Nicolau Breyner estão ao nível do melhor que já fizeram.

Uma última nota para a extensa galeria de secundários, ela própria elemento de ligação ao suposto real, quase todos participações icónicas extremamente conseguidas, onde mesmo assim destaco o ministro yuppie de Virgílio Castelo, a fazer lembrar algumas figuras do socratismo.

Call Girl está longe de ser um filme perfeito ou cinema para a posteridade, mas é um tal tour de force de crença do seu autor na sua ideia de cinema, que esqueço qualquer defeito que possa ter e recomendo-o viva e incondicionalmente.

8 comments:

Daniel Pereira said...

O filme ainda não vi, quero vê-lo, mas para já não posso falar.

Mas tenho dificuldade em ver mérito por alguém dizer aquela frase sobre o Pedro Costa. E isto não tem que ver com o gostar do trabalho dele ou não (nem sei sequer se chegaste a ver o "Juventude em Marcha"). Isto porque, em qualquer dos casos, é uma frase simplista. Ao fim e ao cabo, é utilizar o mesmo tipo de absolutismos que provavelmente vês em certos círculos e respectivos apaniguados que endeusam o Pedro Costa (eu endeuso-o mas não sei se faço parte dessa malta, talvez). Para já não falar na completa menorização e imediata negação de um cinema diferente.

Posto isto, e para ser honesto, admito desde já que apenas escrevi este comentário porque gosto imenso do Pedro Costa e da sua obra e porque deixei de gostar do António-Pedro Vasconcelos e apenas gosto medianamente dos dois filmes que vi dele.

Cumprimentos.

Anonymous said...

Caro Daniel,

Encontrei méritos no texto do APV porque vai contra 99% do que se escreve sobre cinema (ou sobre a Arte em geral) em Portugal. O estilo é excessivo e o autor cai pontualmente nalguns lugares comuns e generalizações que seriam perigosas noutro contexto. Isso não invalida o sentido geral da coisa, mais ainda quando se sabe de onde vem APV. Ele convive há anos com esses círculos, é um filho das mesmas condições que formaram os pais fundadores das supostas elites, e sofreu na pele como actor da história cultural deste país nos últimos 30 anos, por a sua visão não ser convergente com certos paradigmas escritos em pedra.

Não pretendi nem pretendo vitimizar ou santificar APV. Refira-se que não o conheço de lado nenhum pelo que não posso gostar ou deixar de gostar dele. Quanto à pessoa pública fora do cinema, nem sequer tenho especial simpatia pela mesma, pois está muito associada a um programa de debate sobre futebol que, nas raras vezes que o vejo, me parece ter mais lugar numa mesa de café do que numa estação pública de televisão (e até sou sócio do Benfica). No cinema, gosto bastante de “Os Imortais”, acho “Jaime” fraquinho e tenho recordações demasiado vagas de “O Lugar do Morto” para me poder pronunciar.

A frase sobre Pedro Costa é simplista? Sim, claro que é. Como o são muitas declarações de Godard ou Straub sobre o imperialismo de Hollywood. Ou do próprio Pedro Costa sobre outros cinemas e cineastas, até bem mais contundentes e bunkerizadoras na exclusão de outras ideias de arte, só que com menos piada.

A questão em relação ao Pedro Costa a que aludo, e a razão porque achei especial piada ao cognome, é que Costa é talvez o sintoma actual mais consumado de um consenso que de tão universal se torna dogmático. É certo que eu não tenho tempo, vida ou disponibilidade mental para ler todos os jornais e revistas, mas li certamente mais que um dezena de textos na imprensa, para nem falar de blogues, sobre o “Juventude em Marcha”. Não encontrei um de alguém que não gostasse do filme e houve talvez um único que colocava escassas reservas. O resto eram profissões de fé incondicionais no cineasta e no seu cinema. Nada contra, nem ponho em causa a honestidade intelectual das mesmas, mas não é estranho não haver contraditório? Não aparecer uma ou outra voz dissonante? Foi neste contexto que, ao ler o artigo do APV, soltei uma estridente gargalhada quando li o dito epíteto.

Fazendo também um voto de honestidade, posso dizer que vi o “No Quarto na Vanda”, ou melhor sentei-me a olhar para o televisor durante três horas, mas não consegui encontrar algo que estabelecesse um canal de comunicação comigo. A insistência de vários amigos, tentei já por algumas vezes ver o “Juventude em Marcha”, mas, ao fim de 20-30 minutos acabo sempre por desistir, vencido pelo sono, pelo tédio ou por solicitações mais prementes.

Cumprimentos e votos de feliz Ano Novo,

João Eira

Hugo said...

Ainda não vi o Call girl, mas confesso que o cognome dado por APV ao Pedro Costa peca, para além de uma manifesta dor anatómica (acho eu...), por usar do mesmo vício que APV critica: a forma simplista/redutora...

E sim, considerem-me apaniguado do Pedro Costa. É que quanto ao APV só me lembro de uma frase de João César Monteiro proferida nos anos '70 onde, no essencial, se dizia que a pessoa em questão não percebia muito disto (Cinema, claro). O problema (se é que o é) prende-se em saber o que cada um dos cineastas entende por Cinema, tal como aquilo que os respectivos "apaniguados" entendem pela mesma expressão. Certamente será diferente. Enquanto APV pensará (julgo eu) em entretenimento, Costa pensará em tentativa de reacção contra uma dada realidade.

Bom 2008.

Daniel Pereira said...

Alguns apontamentos para terminar:

- Se se pode falar num discurso contra a Hollywood contemporânea de Pedro Costa, que existe, creio que é justo dizer que é um discurso generalizado. Ou seja, tirando o caso pontual do último James Bond, que estreou na mesma semana de "Juventude em Marcha", e por isso se revelava um contraponto óbvio, não me lembro de ler/ouvir o Pedro Costa pegar em alvos específicos como APV faz na frase discutida.

- Para o bem e para o mal, concordo totalmente com a última frase do teu primeiro parágrafo.

- Em relação ao quarto parágrafo, não é com certeza "Juventude em Marcha" o único filme da história de que se só fala bem (ideia, aliás, com a qual não concordo).

Posto isto, parece-me que andamos aqui em volta de algo com que todos concordamos. Frases simplistas, quer venham de APV sobre Costa ou de Godard sobre Spielberg, não devem ser tidas em conta para além de um pontual divertimento.

Cumprimentos e um desejo de Bom Ano.

Anonymous said...

Caro Hugo,

Que o cognome é simplista e redutor, já o disse atrás, é. Que achei muita piada, também.

Tenho parcos conhecimentos de anatomia, por isso não me vou pronunciar sobre esse aspecto. Mas, a existir tal maleita, talvez um episódio da mesma se possa ter verificado aquando das declarações, também contundentes mas pouco elaboradas, que Pedro Costa dirigiu a David Lynch e outros que agora não recordo, em entrevista à TSF no ano 2000. Não será o acto de atribuir tais declarações a aflições anatómicas uma visão simplista e redutora?

Eu não vejo qualquer problema em ambos os cineastas terem visões diferentes do que é o Cinema. Aliás, se formos rigorosos, cada cineasta digno desse nome, terá certamente uma visão única e unipessoal sobre essa definição. Parece-me ainda que sugerir que APV é alguém que apenas pensa o Cinema em função de entretenimento ou que Costa é meramente um cineasta reaccionário é simplista e redutor.

Em qualquer caso, o meu breve parágrafo que aludia ao artigo de APV não pretendia mais do que salientar que considerei muito engraçado o título dado a Costa e que, enquadradas no devido contexto, as palavras de APV me parecem pertinentes. É evidente que, dado o carácter meramente opinativo do mesmo parágrafo, na ausência de maior fundamentação, era ele próprio simplista e redutor.

Votos de um excelente 2008.

Anonymous said...

Caro Daniel,

Ponto 1:
Eu não acompanho ao pormenor os pensamentos de Pedro Costa sobre esta matéria. Mas, como já referi atrás, já ouvi entrevistas dele em que colocou nomes nos bois. Já agora, considero que referir alvos específicos nada tem de mal, até contribui para a clareza da discussão.

Ponto 3:
Sim, “Juventude em Marcha”, e o cinema de Pedro Costa no geral, não são certamente os únicos a receberem tal tratamento. Considero que é um exemplo pertinente de um certo comportamento, e aqui a alusão advinha directamente do artigo de APV. Mas não sou, nem pretendo ser, sociólogo. Como expliquei na última frase do comentário anterior, o parágrafo que escrevi não tinha pretensões além de saudar um texto que considerei pertinente e uma expressão que achei humoristicamente feliz.

Quanto ao teu último parágrafo, estou plenamente de acordo.

Bom ano e bons filmes.

Daniel Pereira said...

João,

não queres contar isso do Costa sobre o Lynch? Não conheço essa história e parece-me interessante.

Anonymous said...

Daniel,

Ouvi essas declarações numa entrevista do Pedro Costa à TSF por alturas da estreia do "No Quarto da Vanda". Penso que foi ao Carlos Vaz Marques no "Pessoal e Transmissível", mas também pode ter sido ao Tiago Alves num programa de cinema qualquer da estação. Já procurei no arquivo online da TSF, mas não encontro.

Do que recordo da entrevista, a certa altura discutia-se o cinema de hoje, e veio aquele discurso mais ou menos batido sobre Hollywood ou outro "sinónimo" (cinema comercial, "cinema que passa", etc). O que me surpreendeu, e que é a razão porque recordo o episódio, é que depois o Pedro Costa apontou um exemplo de um cineasta "desse cinema", sendo bastante contundente na forma como expressou a sua distância face ao cinema do mesmo. Eu fiquei com esta na memória justamente pela bizarria da associação do nome referido - David Lynch -ao mainstream hollywoodesco. Bem, ao menos fugiu ao lugar comum de citar Spielberg, Coppola ou Lucas.
Lamento, mas os termos exactos utilizados já não recordo.

A entrevista foi, claro, bastante mais rica do que isto, e eu próprio teria bastante interesse em voltar a ouvi-la caso esse registo fosse descoberto algures.