10.11.07

Gangster Limpinho


Para um filme realizado por Ridley Scott, protagonizado por dois dos melhores e mais carismáticos intérpretes da actualidade, centrado no duelo entre um barão da droga e o polícia que o persegue, as expectativas, mesmo considerando todos os imponderáveis, teriam que ser no mínimo elevadas. E, à cabeça, devo deixar claro que American Gangster ficou longe, muito longe, de me encher as medidas. Talvez desilusão seja uma palavra forte, mas deixou uma sensação clara de vazio.

Não quer isto dizer que American Gangster seja desprovido de méritos. O filme de Ridley Scott é, na sua essência, uma história bem contada, oleada ao mais ínfimo pormenor para manter o motor narrativo a carburar a velocidade de cruzeiro e imperturbável por qualquer sobressalto. Por isso mesmo, os 157 minutos de duração do filme notam-se pouco. Mas, se o bem-fazer narrativo permite cumprir os mínimos de uma experiência agradável, a verdade é que pouco mais vi nesta obra. Por muito que a teia de acções esteja bem urdida, falta-lhe uma rede de relações que a acompanhe a cada momento, introduzindo real densidade Humana, transformando os personagens de meros portadores da história em verdadeiros Actores da mesma. Isso acontece de forma esparsa, reduzindo-se demasiadas vezes a caracterização dos personagens a meros episódios de contextualização, com dois os três diálogos muitas vezes ditos por personagens tipo cuja função se resume a isso.

A sensação de superficialidade é agravada quando passamos para a contextualização histórica e social. Não me refiro aqui, saliento, às liberdades criativas que foram tomadas em relação à true story referida no início, questão tantas vezes levantada nestes casos e que normalmente desvia o debate dos méritos da obra para questões laterais. Refiro-me à forma como é tratada a época e como os personagens e situações se incorporam e interagem com esta. E, se por um lado o filme faz questão de mostrar muitas coisas – a essência Americana, a Guerra do Vietname, a introdução de narcóticos nos Estados Unidos, a questão racial –, elas aparecem retratadas de uma forma não só óbvia, mas acima de tudo superficial. Mais uma vez, privilegiou-se um carácter factual, presente nos vários planos de bandeiras americanas, nos interlúdios televisivos de contextualização, no combate de boxe histórico entre Joe Frazier e Muhammad Ali ou até na sequência sensivelmente a meio do filme em que ao som de música da época (Across 110th Street de Bobby Womack, já usada em Jackie Brown) se acompanha o circuito da droga feita dinheiro das selvas do Vietname até às festas em apartamentos de luxo em Nova Iorque, em detrimento de um carácter vivencial que procure incorporar a época e os acontecimentos eles próprios como verdadeiros Actores da história. A somar a isto, ou porventura como consequência, acaba por sobressair uma sensação de excessiva reciclagem, como se estivesse perante a enésima versão da mesma história contada da mesma maneira.

American Gangster passa também como uma espécie de tentativa de best-off dos filmes do género. Inúmeros foram os filmes que me lembrou, de The Godfather a Goodfellas, de Scarface a Heat. Infelizmente, ao lembrar esses filmes, acaba por salientar a sua menoridade face aos mesmos, reforçando a perda de identidade própria na impossibilidade de recriar criativamente a inspiração que foi lá beber.

Deixo para o fim o melhor. De facto, o pouco algo mais que uma história bem contada que American Gangster trás não é tão pouco assim. É o que acaba por elevar o filme acima da mediania. Falo da personagem central, Frank Lucas, a única que tem uma verdadeira construção dramática (Richie Roberts, o seu contraponto policial, acaba, apesar de todos os esforços de Russell Crowe, por enfermar dos males descritos atrás) e sobretudo da sua encarnação por Denzel Washington. Actor que raramente falha, Washington tem aqui uma das suas mais monumentais criações. É certo que o personagem nunca poderia ficar imune à ecologia dramática que a rodeia, mas a força da interpretação de Denzel é de tal ordem que quase faz esquecer as limitações do argumento quando está em cena. É nomeação garantida, e mais do que merecida, para o Óscar que já ganhou por duas vezes.

American Gangster
prometeu muito, mas não cumpriu a maioria do programa. Acabou por funcionar uma regra de mínimo denominador comum e o todo que fica é claramente inferior à soma das partes. Ou, numa outra perspectiva, talvez acabe por ser um filme que se identifica muito mais com a imagem de marca do seu produtor, Brian Grazer, do que com uma certa visceralidade característica dos filmes de Ridley Scott.

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