2007 é o ano que marca trinta anos de carreira de um dos maiores génios do cinema contemporâneo e se dá a estreia da sua nova obra, INLAND EMPIRE, nas salas de cinema portuguesas. Génio é uma palavra utilizada com imoderada frequência e na maioria das vezes perfeitamente desadequada. No entanto parece ser uma das poucas palavras que parece descrever superficialmente o espírito inquieto de David Lynch e da sua ambição insaciável de expor os recônditos sítios da mente humana. O seu percurso mostra isso mesmo: uma exploração, por vezes abstracta, por vezes evidente, da capacidade indefinida do Homem em se tornar no pior e no melhor que pode ser. A abrir esta nova obra, temos um conto tradicional na voz de Grace Zabriskie, numa curta mas perturbadora/reveladora aparição, que parece espelhar na plenitude a indomável arte de David Lynch:
”Certo dia um menino, curioso, abriu a porta da sua casa e viu o mundo. Mas mal atravessou a porta deixou um reflexo, uma sombra; E assim nasceu o Mal, que acompanhou o menino para sempre”
Situar narrativamente a premissa de INLAND EMPIRE é uma tarefa árdua e infrutífera. O realizador diz somente que se trata da história de uma mulher em apuros. Acrescentaria apenas que é um filme sobre um filme dentro de um filme. E que a actriz destes filmes é (quase sempre) Laura Dern. O resto, tal como na definição mais genuína de arte, é aberto a múltiplas interpretações. Mas algo pode-se afirmar acerca desta inolvidável e derradeira obra-prima de David Lynch: é um filme sobre o Cinema em si e como pode ser a ruína e a salvação, mas em qualquer um dos casos, sempre um passo em frente na autenticação do Homem. E nesta arte que é todas as artes, temos a realização de uma relação única com nós mesmos e com algo, que não sendo controlável, é como um espelho partido em cortantes pedaços com inúmeros, e por vezes paradoxais, reflexos.
Tentando seguir a única pista de Lynch e acompanhar a dita mulher em apuros, somos confrontados em primeiro lugar com a actriz. A actriz que seria os olhos do público mas que não é mais que os olhos dela mesma, como estivesse ela a ver este filme ao nosso lado. Essa actriz é Laura Dern, já antiga colaboradora de Lynch em projectos tão diferentes como Blue Velvet e Wild At Heart, obras em que protagoniza personagens antagónicas. Sandy e Lula parecem encarnar o simbolismo da mulher desconjuntada nos dois papéis de santa e de puta, mas em INLAND EMPIRE é isto e muito mais. Para tirar já as afirmações mais “bombásticas” do caminho, a interpretação de Laura Dern neste filme é de tal forma grandiosa e soberba que seria quase obtuso não inclui-la imediatamente no panteão das maiores interpretações da História do cinema. Dern é diferentes reflexos de uma mesma mulher, e o mesmo reflexo de diferentes mulheres. É Artemis, Calíope, Atena, Perséfone, Afrodite. É o Céu e o Inferno. O sonho e a realidade. A vida e a morte. Dern encontra em Lynch o seu profeta e ele encontra nela a sua musa.
Juntos traçam um dos mais misteriosos, alucinantes e hipnotizantes objectos provenientes do mundo da 7ªarte. Graças ao advento do formato digital, que Lynch pela primeira vez adoptou e promete nunca mais largar, INLAND EMPIRE é Cinema sem formato nem guião, arte na sua mais desprendida componente, um fluir continuo de inesgotável liberdade e fruição. O realizador, pela primeira vez, não escreveu o argumento previamente e deixou que a história fosse-se contado por ela própria, resultado de ideias filmadas sem data ou rumo definido, apenas possível com esta nova e solta abordagem que durou cerca de três anos a ser acabada. E no final acordamos como se de um sonho se tratasse, desorientados mas com a percepção de que uma nova porta se abriu e que a partir de agora pode ser explorada, estudada, reconhecida. As interpretações são múltiplas e contraditórias mas a chave do filme reside na forma como a “lost girl” vê e encontra Laura Dern no filme da(s) sua(s) vida(s), culminando numa das mais belas e comoventes cenas que o autor já filmou.
Em INLAND EMPIRE David Lynch encontra-se a si mesmo. As referências aos seus trabalhos passados são manifestas: temos a soturna e assombrosa tragédia de Twin Peaks/Fire Walk with Me, a viagem dramática de The Straight Story, a inocência perdida de Blue Velvet, o terror onírico de Lost Highway, a dilaceração interna e o olhar sobre Hollywood de Mulholland Drive. Vemos todas as marcas de autor: as pesadas cortinas vermelhas que ladeiam a ilusão, o azul como despertar e percepção da realidade, os demónios escondidos na mais imaculada imagem. Contudo INLAND EMPIRE é também o fechar de um capitulo que começou com uma peculiar obra chamada Eraserhead. E simultaneamente o abrir de um novo, de possibilidades infinitas e a promessa de voos ainda mais rasgados, algo que só um mestre no singular domínio da sua arte consegue alcançar. Entretanto ficamos com uma obra-prima contemporânea e nela a oportunidade de revermos tudo aquilo que o Cinema pode ser. E tudo aquilo que é. E o que ainda vai ser.
No comments:
Post a Comment