Dekalog 1
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"It should not be out of place to observe that they have the very rare ability to dramatise their ideas rather than just talking about them. [...] They do this with such dazzling skill, you never see the ideas coming and don't realize until much later how profoundly they have reached your heart."
É talvez a citação mais famosa a propósito desta série de dez episódios, pensada inicialmente para um filme de 10 horas. A citação é de Stanley Kubrick, e o they a que o realizador de 2001: A Space Odyssey se refere é obviamente a Krzysztof Kieslowski e ao seu co-argumentista (não só desta série, mas também das conceituadas obras que se seguiram - La Double Vie de Véronique e os filmes da Trilogia das Cores) Krzysztof Piesiewicz.
E, de facto, Kubrick diz tudo nestas duas frases. Dekalog baseia-se em cada um dos Dez Mandamentos, mas o objectivo de Kieslowski não é falar sobre o seu significado, mas usá-los apenas como ponto de partida para abordar valores morais universais, através de situações concretas. Em que se baseiam as imagens que estamos a ver até acaba por ser irrelevante. Repare-se que Kieslowski nem sequer nos diz de que trata o Mandamento em que cada episódio se baseia, como fiz eu no início deste texto. Isto porque, essencialmente, de onde tudo parte é das relações humanas e dos problemas e sentimentos que lhe estão subjacentes.
"Tudo parte das relações humanas", disse eu. Sim, parte, porque em Kieslowski nunca há só seres humanos que se relacionam entre si, mas sobretudo a forma como estes, por sua vez, se relacionam com aquilo que transcende a sua (nossa?) compreensão. É claro que, falando de La Double Vie de Véronique ou de Trois Couleurs: Rouge, essa abordagem é óbvia. Mas é quase sempre possível encontrar em Kieswloski, seja de forma mais óbvia ou menos óbvia, algo de divino. Não necessariamente religioso, no sentido corrente da palavra, mas de divino e de transcendente. Ou seja, Kieslowski vai buscar uma questão anterior: porque nos relacionamos com determinada(s) pessoa(s)?, talvez seja uma forma de a colocar. Ou, relacionado de forma mais concreta com o primeiro episódio de Dekalog, fará mais sentido perguntar: de que forma é que aquilo que não compreendemos pode afectar a nossa relação com o(s) outro(s)?
Pawel, uma criança muito inteligente, é educado pelo pai desde cedo sobre questões lógico-matemáticas, com auxílio de um computador que usam para calcular, por exemplo, a dureza do gelo do exterior. A sua tia, por outro lado, acredita que o rapaz deve ter também acesso a uma educação religiosa. Mais uma vez, as questões levantadas serão as mesmas, mas este primeiro episódio fala-nos essencialmente daquilo que para a ciência e para nós é imprevisível, consequência da aleatoriedade de certos aspectos do mundo e da vida, o que torna impossível prever tudo de forma exacta. Kieslowski reconhece essa impossibilidade, e, como tal, aborda esse lado transcendente precisamente dessa forma: reconhecendo-o sem o tentar compreender. É nesse sentido que não há nada de religioso em Kieslowski: não se procuram respostas para o incompreensível, mas apenas reconhecê-lo como tal; como transcendente da compreensão humana.
1 comment:
Compartilho completamente de sua visão sobre o Decálogo. Acabo de ser introduzida neste uiverso de Kieslowski e o que me impressionou foi justamente esta delicadeza do diretor em tocar em questões tão profundas. Embates "ïnvisíveis" entre o lógico e o transcendente; entre o eu e o outro; entre o certo e o errado - questões cotidianas que abordadas pelo diretor com sua lente de aumento nos tocam, sem que percebamos o quanto podem ser fortes, presentes, nossas.
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