O que buscamos no Cinema?
Qualquer cinéfilo que se preze (ou, de forma mais lata, qualquer espectador minimamente interessado) encara o Cinema (também) como uma busca. Quer dizer, olha para as imagens em movimento que fazem o Cinema ser Cinema não como acto final ou absoluto mas como caminho. Numa outra formulação, porventura mais evidente, poder-se-á afirmar que o compromisso de sermos espectadores de Cinema é, desde logo, um compromisso de participação e de diálogo com as imagens que recebemos. Esse diálogo com as imagens só existe, no entanto, em sentido pleno, se buscarmos nelas alguma coisa (que, à partida, pode ser tudo, pois o Cinema é a Arte de todas as possibilidades).
O que buscamos, então, quando nos relacionamos com o Cinema? Trata-se, bem sei, de uma questão de irresistível e inultrapassável subjectividade. Mas sempre se poderá dizer, sem grandes imprudências, que buscamos primeiramente memórias. Acima de tudo, memórias. Que memórias? Desde logo, claro, as memórias que o cinematógrafo registou (não esquecer que, em termos naturalísticos, as imagens que vemos projectadas correspondem sempre a um passado). Depois, e sobretudo, buscamos imagens que perdurem em nós enquanto memórias (na nossa memória). Os anos passam e as memórias dos filmes que vemos aglutinam-se no nosso espírito, de tal modo que essas memórias se vão progressivamente transformando em memórias de memórias, num processo de tranquila eternização daquilo que é verdadeiramente marcante. O Cinema é a Arte da memória, pois claro.
Mas mais importante do que aglutinar essas memórias é saber o que fazer com elas. O que nos leva, por sua vez, a uma questão prévia: que tipo de memórias queremos guardar? Ou, noutra formulação, e retomando a questão anteriormente colocada: o que buscamos no Cinema? É esta a perspectiva que neste contexto mais me interessa, porque é nela, de facto, que pode habitar toda a subjectividade do mundo. Cada um de nós busca sempre algo de significativo nos filmes que vê, seja ele a transcendência ou simplesmente o impacto estético, intelectual, emocional ou moral de uma grande história. É claro que qualquer uma dessas dimensões pode coexistir no mesmo filme ou no mesmo espectador. Mas no limite há sempre algo que nos faz correr mais longe…
Pela minha parte, esse “algo” que me faz correr mais longe é o radicalismo. O que mais me mobiliza na minha relação com o Cinema é, de facto, a busca de imagens radicais. E com radicalismo pretendo acentuar as experiências mais próximas das margens do que do centro, que desafiem o olhar para além dos normais desafios da vida. Esta busca do radicalismo é, no fundo, como bem se compreende, uma busca da transcendentalidade (da Arte) das coisas. Certo é que esse radicalismo se pode manifestar nas mais diversas configurações, ter as mais diversas fontes e resultar das mais diversas conjugações. Por exemplo: o radicalismo formal, que dissocia som e imagem, presente em «India Song» (Duras, 75); a obsessão radical vivida por “Scottie” em «Vertigo» (Hitchcock, 58); a viagem ao infinito de «2001: A Space Odyssey» (Kubrick, 68); a transcendência de «Persona» (Bergman, 66); a forma como a incapacidade de amar é retratada em «L’Eclisse» (Antonioni, 62); o abismo que habita o olhar de Anne em «Vredens Dag» (Dreyer, 43); a trepidante evocação de memórias de «Zerkalo» (Tarkovsky, 75); a relação intelectual entre homem e mito presente em «Young Mr. Lincoln» (Ford, 39); a dolorosa busca de amor protagonizada por David em «Artificial Intelligence: AI» (Spielberg, 01), etc.
Vinha tudo isto a propósito de «The Fountain», filme de muitos radicalismos. Ponto a retomar num próximo texto...
O que buscamos, então, quando nos relacionamos com o Cinema? Trata-se, bem sei, de uma questão de irresistível e inultrapassável subjectividade. Mas sempre se poderá dizer, sem grandes imprudências, que buscamos primeiramente memórias. Acima de tudo, memórias. Que memórias? Desde logo, claro, as memórias que o cinematógrafo registou (não esquecer que, em termos naturalísticos, as imagens que vemos projectadas correspondem sempre a um passado). Depois, e sobretudo, buscamos imagens que perdurem em nós enquanto memórias (na nossa memória). Os anos passam e as memórias dos filmes que vemos aglutinam-se no nosso espírito, de tal modo que essas memórias se vão progressivamente transformando em memórias de memórias, num processo de tranquila eternização daquilo que é verdadeiramente marcante. O Cinema é a Arte da memória, pois claro.
Mas mais importante do que aglutinar essas memórias é saber o que fazer com elas. O que nos leva, por sua vez, a uma questão prévia: que tipo de memórias queremos guardar? Ou, noutra formulação, e retomando a questão anteriormente colocada: o que buscamos no Cinema? É esta a perspectiva que neste contexto mais me interessa, porque é nela, de facto, que pode habitar toda a subjectividade do mundo. Cada um de nós busca sempre algo de significativo nos filmes que vê, seja ele a transcendência ou simplesmente o impacto estético, intelectual, emocional ou moral de uma grande história. É claro que qualquer uma dessas dimensões pode coexistir no mesmo filme ou no mesmo espectador. Mas no limite há sempre algo que nos faz correr mais longe…
Pela minha parte, esse “algo” que me faz correr mais longe é o radicalismo. O que mais me mobiliza na minha relação com o Cinema é, de facto, a busca de imagens radicais. E com radicalismo pretendo acentuar as experiências mais próximas das margens do que do centro, que desafiem o olhar para além dos normais desafios da vida. Esta busca do radicalismo é, no fundo, como bem se compreende, uma busca da transcendentalidade (da Arte) das coisas. Certo é que esse radicalismo se pode manifestar nas mais diversas configurações, ter as mais diversas fontes e resultar das mais diversas conjugações. Por exemplo: o radicalismo formal, que dissocia som e imagem, presente em «India Song» (Duras, 75); a obsessão radical vivida por “Scottie” em «Vertigo» (Hitchcock, 58); a viagem ao infinito de «2001: A Space Odyssey» (Kubrick, 68); a transcendência de «Persona» (Bergman, 66); a forma como a incapacidade de amar é retratada em «L’Eclisse» (Antonioni, 62); o abismo que habita o olhar de Anne em «Vredens Dag» (Dreyer, 43); a trepidante evocação de memórias de «Zerkalo» (Tarkovsky, 75); a relação intelectual entre homem e mito presente em «Young Mr. Lincoln» (Ford, 39); a dolorosa busca de amor protagonizada por David em «Artificial Intelligence: AI» (Spielberg, 01), etc.
Vinha tudo isto a propósito de «The Fountain», filme de muitos radicalismos. Ponto a retomar num próximo texto...
8 comments:
Não busco somente o radicalismo, embora o radicalismo muitas vezes me toque (esse em bruto da escrita da Duras pode ser um equivalente literário à forma como vejo esse radicalismo).
Num sentido ligeiramente mais geral, amo no Cinema o sentir, filmes que me encham, me preencham, me façam entrar em êxtase de espanto, me arranquem lágrimas de rendição. Que me levem com a sua beleza, me toquem com a sua humanidade, me digam algo de forma tão perfeita que haja uma ligação, mas também algo de transcendente. Coisas como O Novo Mundo de Malick - para citar um exemplo recente - ou como Aurora de Murnau - para citar um do mudo.
Naturalmente vejo muitos filmes, e vários filmes que considero obras muito boas, mas desses apenas alguns me devastam, de forma boa ou de forma má, mas sempre de forma total. Como o Hiroshima Mon Amour (para citar um exemplo em que creio estarmos de acordo).
A dimensão do cinema enquanto memória interessa-me, mas de um outro ponto de vista, talvez daquele que me liga à minha suposta via 'profissional'. Interessa-me o filme como testemunho (La Chinoise de JLG, pela prova viva das motivações de 68 nas suas vésperas), como objecto histórico (O Couraçado Potemkin é um bom exemplo, pelo tanto que marcou), como arte que carrega consigo marcas de um tempo, que persiste (City Girl de Murnau e a solidão citadina em plena época da dinâmica metropolitana, mas cujos ecos de isolamento emocional permenecem em, p.e. Lost in Translation). Nesse ponto de vista interessam-me também objectos de propaganda mais ou menos evidente, que naturalmente não me arrebatam pessoalmente mas cujo interesse não desdenho, como veículos de compreensão e prova de um tempo e uma realidade.
Termino por aqui, que o comentário já vai longo, mas a pergunta do título do teu post dá de facto pano para mangas...
diria que busco aprendizagem... evolução.
Gosto de cinema não como forma de distracção ou abstracção mas sim, como forma de envolvimento.
Mas tens razao no que respeita à memória...
Nca irei esquecer esta frase:
You need to resign from the awkwardness of life. Only if you find peace within yourself will you find true connection with others (Before Sunrise)
O que eu busco no cinema não é bem radicalismo. Sou capaz de defender um filme, quando este é capaz de, através do mundo paralelo que mostra, mostrar ainda melhor o Mundo da vida real. Quando um filme me mostra sentimentos que eu nem sabia que tinha, quando identifico através de um filme realidades das quais mal me tinha apercebido, quando me sinto desmascarado, ou consigo desmascarar alguém, através do que vejo, atinjo o meu orgasmozinho cinematográfico. O roçar das duas realidades é o que me dá mais gozo e o que sinto que me educa mais.
Isto também se passa com outras formas de expressão, mas honestamente, no cinema a preguiça é mais fácil de vencer.
Claro que tudo isto não passa da minha maneira de lidar com estes assuntos intelectuais dos quais ainda não percebo grande coisa.
Há uma personagem em Yi Yi que explica que o tio diz que desde que inventaram o cinema, vivemos três vezes mais.
Talvez seja também o que procuramos no cinema. Toda a complexidade das vivências de um ser humano, incluindo as diferentes visões do mundo de cada um, sentimentos, etc. Observarmos isso como se estivessemos, de facto, a viver uma vida diferente da nossa, como se diz no filme de Edward Yang. E se há filme sobre vivências de seres humanos no seu quotidiano, é esse filme.
Portanto, acho que posso dizer que é uma das coisas fundamentais que procuro no cinema. A cumplicidade que se pode criar entre mim e as personagens de determinado filme. Para se tornarem memórias? Claro que sim. Como de pessoas que já passaram. Afinal, voltando ao mesmo, é como se tivesse vivido um pouco mais.
- Did you like the movie?
- A bit too serious.
- You prefer comedies?
- Not really, but it didn't have to be so sad.
- Life is a mixture of sad and happy things. Movies are so lifelike, that's why we love them.
- Then who needs movies? Just stay home and live life!
- My uncle says... "we live three times as long since man invented movies."
O que eu busco no cinema são sentimentos. A maneira como um determinado filme me faz sentir e o querer voltar a sentir exactamente o mesmo é o que me faz voltar ao cinema na ânsia de voltar a sentir exactamente o que senti com determinado filme ou ainda mais. Talvez seja demasiado simples mas é apenas isto. Quanto ao radicalismo acho difícil alcançar isso com um filme, só o consigo quando viajo e conheço determinadas pessoas/paisagens
(http://significados.livejournal.com)
Poderia discorrer imenso sobre o tema que lanças, colocando-me inclusivamente ao lado da Helena, na plataforma sensitiva. Mas apenas digo isto: Milhares e milhares de filmes depois, o que procuro no Cinema foi revelado e transcendido no visionamento, ou melhor, na experiência do derradeiro filme que mencionas. "The Fountain" é tão crucial para mim, que se torna num dos momentos mais altos da minha Vida.
Serão palavras radicais? Nada disso. Não para mim.
Helena – Eu também não busco somente o radicalismo. De facto, como digo no texto, o radicalismo é apenas o factor que por vezes me faz ir mais longe (“correr mais longe”). Porque é ele, no fundo, que me aproxima do transcendente, que ultrapassa os limites normais das coisas e, sobretudo, que me faz sentir o que de outra forma não sentiria. Isto também para dizer que o radicalismo em si não é nada se não estiver associado a um específico sentir. Ou melhor: busco o tal radicalismo para poder sentir algo de muito forte. Daí que possa perfeitamente subscrever as tuas palavras sobre esse sentir que dizes buscar acima de tudo no Cinema. Uso a expressão radicalismo numa acepção lata, que pode abarcar, como disse no texto, as mais diversas configurações. E é claro, igualmente, que nem todas as obras-primas são obras radicais, embora nelas exista sempre algo que desperte em mim um certo radicalismo no sentir ou no pensar.
Por outro lado, essa dimensão de memória de que falas também me interessa muito, apesar da História não ser a minha área de formação (embora seja uma paixão antiga). Certo é que essa capacidade do Cinema de remeter directamente para um passado (as tais memórias registadas pelo cinematógrafo) ou de se apoderar dele através da encenação/recriação é também uma das mais fascinantes possibilidades cinematográficas.
E quanto ao mais, estamos, de facto, de acordo quanto a «Hiroshima Mon Amour», embora a referência ao «The New World» tenha deitado algo a perder ;)
Pris – De acordo quanto à ideia de que o Cinema é algo de mais significativo do que a mera distracção do espírito. E «Before Sunrise» é, de facto, um filme inesquecível.
Francequisco – Essa perspectiva é bastante válida. Esse mundo paralelo do Cinema é, como disse no meu texto, um mundo de infinitas possibilidades. E assim sendo, podemos viver nele a partir do mundo real. E isso tem algo de radical…
Miguel – Bela perspectiva. A cumplicidade com as imagens que recebemos é, de facto, elemento inultrapassável da relação humana com o Cinema. Olhamos para o mundo que se esconde para lá da tela e somos cúmplices de tudo o vemos, como se olhássemos para uma realidade tangível. No Cinema, como na Vida, também vivemos muito quando observamos os outros a viverem…
Catarina – O Cinema está repleto de experiências radicais. A Vida também, claro. E no limite as duas coisas complementam-se. As possibilidades de radicalismo estão nas imagens que vemos e no choque que operam em nós. E isso tanto pode acontecer quando vemos pela primeira vez uma paisagem como quando vemos pela primeira vez determinado filme. O Cinema não é a Vida, mas quando vemos um filme não paramos de viver…
Francisco – «The Fountain» é, sem qualquer dúvida, uma obra radical. Já vi o filme 4 vezes no cinema, precisamente para poder repetir o radicalismo da experiência, e a cada novo visionamento o filme transcende-se. É isto, de facto, também, que busco no Cinema.
Para mim a ida ao cinema tem qualquer coisa de transcendental e cósmico, de profano e sagrado. Curiosa interpretação da arte de memória pois a definição de memória é em si mesmo a fixação da imagem. Aquelas imagens que como um puzzle inacabado formam o nosso "eu". Radical, sim, não no sentido do exótico mas do limite, da sensação de experiência pessoal perto do extremo. Radical, sim, não no sentido de fundamentalismo mas do "milagre" perante mim, de uma espécie de revelação que posso até encontrar na cena mais simples, com menos artifícios ( o que geralmente sucede). Radical, sim, no sentido de um tiro certeiro que nos acerta e desconcerta o "logos" e o sentir. Talvez por isso o cinema seja também a arte de solidão, na medida em que em última instância quem realiza o filme somos nós. E aquele silêncio em que gosto de ficar depois do filme acabar, talvez seja ainda cinema. ( alguém dizia que depois de ouvir Mozart o silêncio que se seguia ainda era música de Mozart). Que sensação de plenitude, de "ordem" do caos mas também de "desorientação" da suposta harmonia quando encontro " Aquele Filme". O que busco no cinema? Algumas respostas, muitas perguntas e variados caminhos!!
Ana Rute Garcia
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