29.4.07

A razão das sensações



Há filmes que nos obrigam a escrever, mesmo quando a disponibilidade não é muita. Obrigam-nos, em primeiro lugar, porque sentimos que a palavra é a única forma de esquecermos a solidão em que o filme nos colocou e partilharmos essa solidão com mais alguém. Não necessariamente alguém que nos compreenda ou que concorde com a nossa opinião, mas sobretudo, alguém que, através das nossas palavras, perceba o que sentimos. Obrigam-nos, também, porque a escrita tem uma luminiscência própria que nos permite reestruturar o pensamento, as ideias e a nossa disponibilidade afectiva para lidarmos com mundos e formas que desconhecemos e não compreendemos. Inland Empire é um desses filmes. Coloca-nos perante a radical impossibilidade da nossa verdade. Lynch sabe que, para encontrar a catarse e a luz no cinema, é primeiro preciso escondê-la, mostrar os lugares mais perturbantes da nossa natureza e obrigar-nos a lidar com as suas próprias regras. As opções formais do cineasta são, antes do mais, um desafio à nossa própria dialéctica de lógica e pensamento, sustentando uma máxima que me parece alienígena nos dias que correm. A saber: as histórias, o cinema (e, no limite, a arte) não existem para dar um destino ao mundo. Assim como o nosso olhar não existe para as explicar, apenas para as visitar. Há muito de Godard nesta forma de compor mundos e imagens, construindo-os para desafiar os poucos olhares que, segundo ele, ainda existem no mundo.

A pergunta que, invariavelmente, a maioria dos espectadores fará no fim do filme será: “Mas, afinal, este filme é sobre o quê?” Alguns irão até mais longe e afirmarão, indignados: “Este filme não faz sentido nenhum!” A primeira pergunta parece-me sempre um pouco perigosa, já que coloca algo que é plural e incerto num terreno de uma anónima objectividade que lhe pretende impor um sentido universal. Sou contra isto, sobretudo em objectos como Inland Empire, em que o seu centro temático está na sensibilidade de cada um de nós e não numa alegada objectividade que importa confrontar na lógica televisiva de um programa de debate sócio-político. O mais inquietante em Inland Empire é precisamente, numa primeira abordagem, sentirmo-nos absolutamente comovidos e perturbados com as suas imagens, mesmo sem as compreendermos. Sentirmo-nos perdidos nas nossas emoções. O lugar comum diria que é um filme que actua ao nível dos sentidos, mas é mais do que isso; é um jogo labiríntico com o subconsciente afectivo, com os seus segredos e as suas razões.

As lágrimas que nos acompanham no final são provavelmente as mesmas da jovem que olha para o televisor como se tudo se decidisse ali. Ali, do outro lado, como se ouve na música. São lágrimas que choramos sem sabermos explicá-las de forma universal. Porque essa universalidade perde-se na intimidade de cada um de nós, no olhar... Não sei porque choro com ela, nem a razão desse momento final me comover e inquietar tanto. Não tenho nenhum fundo lógico e literário que me contextualize e componha um património afectivo, nenhuma lógica que me permita identificar com ela e, interiormente, saber enunciar as razões que expliquem porque chora e porque se sente como se sente (e, em boa verdade, as razões para eu me sentir como me sinto). Será que é preciso? Será necessário explicar as minhas emoções de forma tão linear, como se tudo caminhasse numa lógica literária para imprimir destinos nas personagens e no mundo? Eu não defendo a anarquia e arbitrariedade das formas e imagens. Tudo tem que fazer um sentido e, em boa verdade, Inland Empire fez todo o sentido aos meus olhos.

Há um sentido grandiloquente e totalitário, maior que o sentido que a literacia da nossa consciência quotidiana espera sempre encontrar. Há em Laura Dern (e na desconstrução das suas duas personagens) a tragédia das grandes figuras femininas do cinema, desde Shirley MacLaine a Natalie Wood, recuperando também a irreversibilidade trágica da sua presença numa tela de cinema. Num sentido nada acidental e que apenas reforça o cunho autoral do cineasta, a figura feminina dos seus filmes volta a lutar contra o sofrimento de ter que viver. Desde Sheryl Lee (Fire Walk With Me) até Isabella Rossellini (Blue Velvet), passando por Naomi Watts (Mulholland Drive) que a mulher lynchiana conhece apenas o sofrimento de ter que viver até descobrir a luminosidade da morte que tudo encerra.

Tudo neste filme parece deificado, os corpos parecem aparições e cada imagem um pequeno milagre, tornando-se, de facto, uma experiência religiosa assistir à decomposição artística do corpo e alma da personagem de Laura Dern. Qual o significado dos coelhos? E da vizinha bizarra que visita Nikki no início? E como se distingue o que é real e não é? Podemos, de facto, fazer este exercício de recriarmos interpretações nossas para nos sentirmos mais seguros da nossa opinião sobre o filme, mas a verdade é que tudo isso acaba por ser lateral. Estivemos em Inland Empire e isso é o mais importante. Contorcemo-nos de medo perante o desconhecido do imaginário que lentamente se vai decompondo; sustivemos a respiração perante a cumplicidade inquietante em que somos colocados nas contracenações de Laura Dern e Justin Theroux; e choramos com a beleza transcendente e intocável das imagens finais. Perante isto, tudo o resto serão apenas exercícios interessantes para aconchegarmos a insegurança e o controlo que precisamos de sentir sobre o mundo e sobre o nosso próprio destino. Que o destino de um filme seja o espelho de um reflexo nosso que nunca antes conseguimos ver, eis a sua grande proeza!

25.4.07

Chick Flic...

Talvez Because I Said So seja daqueles filmes que comunica directamente com aquela parte do cérebro que as mulheres têm bem desenvolvida e os homens não. Talvez seja um daqueles insondáveis mistérios como saber o que de bom pode existir nas lacrimejantes entrevistas de vida de Oprah Winfrey ou no espiritismo feirante de Paulo Coelho. Talvez. Mas para mim não deixou de ser uma das mais insultuosas produções a que tive o desprazer de assistir, filme insultuoso que pretende passar por comédia (?) romântica (??) condensando todo e qualquer cliché possível e imaginado. Que Mandy Moore, que tem tanto de actriz como eu de padeiro, aceite embarcar neste projecto, entende-se. Já que Diane Keaton, que desde Something´s Gotta Give parece apostada em recriar versões embaraçantes do mesmo personagem que aí interpretou, embarque em parvoíces desta dimensão pela mera satisfação de um cheque do qual não deve precisar, é não só preocupante, mas digno de revolta. Um filme a evitar para quem ache que a dignidade humana e do pensamento é algo a respeitar.

Viúva Negra ou Aranhiço?

Spiderman 3 de Sam Raimi

O terceiro tomo cinematográfico da história de Peter Parker/Spiderman continua a adoptar uma filosofia narrativa suportada na condensação da vasta saga que o personagem percorreu nas histórias de quadradinhos. E se no nível estritamente narrativo, “coisas” continuam a acontecer, já no que diz respeito à qualidade das imagens e sua tradução em termos de densidade humana, muitas engrenagens parecem ter começado a emperrar.

Sem a frescura do primeiro filme e muito longe da complexidade dramática do segundo, Spiderman 3 acaba por funcionar apenas como síntese dos filmes anteriores, ponto de passagem que não compromete a continuação da saga, mas que nada de fundamentalmente novo lhe acrescenta.

Aqui, mais do que antes, a rarefacção dramática dos vilões constitui um problema. Sendo a grande pecha da saga, ela era antes muito atenuada pela concentração na definição da psique do personagem central e sua dupla identidade. No segundo filme, e naquela que é uma muito invulgar construção para um filmes destas dimensões e ambições, a transformação da sua ligação a Mary Jane Watson de paixoneta adolescente numa relação adulta e complexa, quase fazia esquecer essa falha. No entanto, deparamo-nos agora com um estranho apagamento, oscilando entre a indiferença e uma certa descaracterização cómica, de Peter Parker/Spiderman que conduz inevitavelmente a um esvaziamento da própria narrativa.

A multiplicação do número de vilões em nada ajuda, e acaba por ser paradoxal que o filme que mais potencial tinha para densificar o caminho que antes se percorria, seja pontuada por tanta dispersão, gerando este efeito de atomização do tecido nervoso da obra. É no mínimo estranho que o aparecimento do lado negro, que deveria justificar uma humanização no sentido mais abrangente do termo, em todas a sua infinidade de facetas, acabe por ter o culminar num superficial número ao jeito de Saturday Night Fever dos pobres, com Tobey Maguire passeando trejeitos de engatatão pelas ruas de Nova Iorque. O efeito é de comédia, mas certamente involuntária, funcionando pela completa ridicularização do personagem.

Neste contexto de falta de combustível ideológico, destacam-se pela positiva, alguns momentos de humor pateta e simples que conseguem o seu objectivo e a chegada ao universo Spiderman de Gwen Stacy (Bryce Dallas Howard), ainda que em sub rendimento neste filme.

Que a saga Spiderman irá continuar, poucas dúvidas existirão. Não representando um retrocesso, esta película constitui claro um passo ao lado, levantando reservas sobre a capacidade da actual equipa criativa em renovar ideias, e garantir o crescimento artístico do projecto. O assumir de Sam Raimi das funções de argumentista não pode deixar de ser encarado como um fracasso. Se novas escolhas forem feitas com critério, a saída de Raimi da cadeira de realização poderá ser a mais acertada das decisões.

20.4.07

Persona


19.4.07

Cannes 2007

Jury: Stephen Frears (presidente), Maggie Cheung, Toni Collete, Maria De Medeiros, Sarah Polley, Marco Bellocchio, Orhan Pamuk, Michel Piccoli e Abderrahmane Sissako.

Filmes em Competição:
MY BLUEBERRY NIGHTS de WONG Kar Wai
AUF DER ANDEREN SEITE de Fatih AKIN
UNE VIEILLE MAÎTRESSE de Catherine BREILLAT
NO COUNTRY FOR OLD MEN de Joel & Ethan COEN
ZODIAC de David FINCHER
WE OWN THE NIGHT de James GRAY
LES CHANSONS D’AMOUR de Christophe HONORÉ
MOGARI NO MORI (The Mourning Forest) de Naomi KAWASE
BREATH de KIM Ki Duk
PROMISE ME THIS de Emir KUSTURICA
SECRET SUNSHINE de LEE Chang-dong
4 LUNI, 3 SAPTAMINI SI 2 ZILE de Cristian MUNGIU
TEHILIM de Raphaël NADJARI
STELLET LICHT de Carlos REYGADAS
PERSEPOLIS de Marjane SATRAPI e Vincent PARONNAUD
LE SCAPHANDRE ET LE PAPILLON de Julian SCHNABEL
IMPORT EXPORT de Ulrich SEIDL
ALEXANDRA de Alexander SOKOUROV
DEATH PROOF de Quentin TARANTINO
THE MAN FROM LONDON de Béla TARR
PARANOID PARK de Gus VAN SANT
IZGNANIE de Andrey ZVYAGINTSEV

Outros destaques (fora de competição):
GO GO TALES de Abel FERRARA
RETOUR EN NORMANDIE de Nicolas PHILIBERT
HE FENGMING (Chronicle of a Chinese Woman) de WANG Bing
L’ÂGE DES TÉNÈBRES de Denys ARCAND

16.4.07

It's a Wonderful Life

Porque uma celebração tão bela da amizade, do amor e das relações humanas vale sempre a pena rever. Haverá mais grandioso e comovente hino à vida?

Criterion em Abril


Destaque para Overlord. Detalhes das edições:
Brute Force de Jules Dassin
La Haine de Mathieu Kassovitz
Overlord de Stuart Cooper

13.4.07

todos os sonhos do mundo


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

- Álvaro de Campos

Sam Lowry não aceita uma promoção no emprego que a mãe, através dos seus contactos, lhe conseguiu arranjar. A mãe pergunta-lhe, indignada, se ele não tem desejos, esperanças, sonhos... Sam responde que não,
not even dreams. Mas, na verdade, ninguém tem sonhos como ele. Sonhos tão loucos que só se sonham de noite, mas que Sam também os sonha de dia - esses sonhos que também nos podem ser, ao mesmo tempo, mais reais que a vida. Porém, estão envoltos, simultaneamente, numa ideia trágica: são sonhados sem um único fundo de esperanças, no limite do desespero.

10.4.07

No império da mente

2007 é o ano que marca trinta anos de carreira de um dos maiores génios do cinema contemporâneo e se dá a estreia da sua nova obra, INLAND EMPIRE, nas salas de cinema portuguesas. Génio é uma palavra utilizada com imoderada frequência e na maioria das vezes perfeitamente desadequada. No entanto parece ser uma das poucas palavras que parece descrever superficialmente o espírito inquieto de David Lynch e da sua ambição insaciável de expor os recônditos sítios da mente humana. O seu percurso mostra isso mesmo: uma exploração, por vezes abstracta, por vezes evidente, da capacidade indefinida do Homem em se tornar no pior e no melhor que pode ser. A abrir esta nova obra, temos um conto tradicional na voz de Grace Zabriskie, numa curta mas perturbadora/reveladora aparição, que parece espelhar na plenitude a indomável arte de David Lynch:

Certo dia um menino, curioso, abriu a porta da sua casa e viu o mundo. Mas mal atravessou a porta deixou um reflexo, uma sombra; E assim nasceu o Mal, que acompanhou o menino para sempre

Situar narrativamente a premissa de INLAND EMPIRE é uma tarefa árdua e infrutífera. O realizador diz somente que se trata da história de uma mulher em apuros. Acrescentaria apenas que é um filme sobre um filme dentro de um filme. E que a actriz destes filmes é (quase sempre) Laura Dern. O resto, tal como na definição mais genuína de arte, é aberto a múltiplas interpretações. Mas algo pode-se afirmar acerca desta inolvidável e derradeira obra-prima de David Lynch: é um filme sobre o Cinema em si e como pode ser a ruína e a salvação, mas em qualquer um dos casos, sempre um passo em frente na autenticação do Homem. E nesta arte que é todas as artes, temos a realização de uma relação única com nós mesmos e com algo, que não sendo controlável, é como um espelho partido em cortantes pedaços com inúmeros, e por vezes paradoxais, reflexos.


Tentando seguir a única pista de Lynch e acompanhar a dita mulher em apuros, somos confrontados em primeiro lugar com a actriz. A actriz que seria os olhos do público mas que não é mais que os olhos dela mesma, como estivesse ela a ver este filme ao nosso lado. Essa actriz é Laura Dern, já antiga colaboradora de Lynch em projectos tão diferentes como Blue Velvet e Wild At Heart, obras em que protagoniza personagens antagónicas. Sandy e Lula parecem encarnar o simbolismo da mulher desconjuntada nos dois papéis de santa e de puta, mas em INLAND EMPIRE é isto e muito mais. Para tirar já as afirmações mais “bombásticas” do caminho, a interpretação de Laura Dern neste filme é de tal forma grandiosa e soberba que seria quase obtuso não inclui-la imediatamente no panteão das maiores interpretações da História do cinema. Dern é diferentes reflexos de uma mesma mulher, e o mesmo reflexo de diferentes mulheres. É Artemis, Calíope, Atena, Perséfone, Afrodite. É o Céu e o Inferno. O sonho e a realidade. A vida e a morte. Dern encontra em Lynch o seu profeta e ele encontra nela a sua musa.


Juntos traçam um dos mais misteriosos, alucinantes e hipnotizantes objectos provenientes do mundo da 7ªarte. Graças ao advento do formato digital, que Lynch pela primeira vez adoptou e promete nunca mais largar, INLAND EMPIRE é Cinema sem formato nem guião, arte na sua mais desprendida componente, um fluir continuo de inesgotável liberdade e fruição. O realizador, pela primeira vez, não escreveu o argumento previamente e deixou que a história fosse-se contado por ela própria, resultado de ideias filmadas sem data ou rumo definido, apenas possível com esta nova e solta abordagem que durou cerca de três anos a ser acabada. E no final acordamos como se de um sonho se tratasse, desorientados mas com a percepção de que uma nova porta se abriu e que a partir de agora pode ser explorada, estudada, reconhecida. As interpretações são múltiplas e contraditórias mas a chave do filme reside na forma como a “lost girl” vê e encontra Laura Dern no filme da(s) sua(s) vida(s), culminando numa das mais belas e comoventes cenas que o autor já filmou.

Em INLAND EMPIRE David Lynch encontra-se a si mesmo. As referências aos seus trabalhos passados são manifestas: temos a soturna e assombrosa tragédia de Twin Peaks/Fire Walk with Me, a viagem dramática de The Straight Story, a inocência perdida de Blue Velvet, o terror onírico de Lost Highway, a dilaceração interna e o olhar sobre Hollywood de Mulholland Drive. Vemos todas as marcas de autor: as pesadas cortinas vermelhas que ladeiam a ilusão, o azul como despertar e percepção da realidade, os demónios escondidos na mais imaculada imagem. Contudo INLAND EMPIRE é também o fechar de um capitulo que começou com uma peculiar obra chamada Eraserhead. E simultaneamente o abrir de um novo, de possibilidades infinitas e a promessa de voos ainda mais rasgados, algo que só um mestre no singular domínio da sua arte consegue alcançar. Entretanto ficamos com uma obra-prima contemporânea e nela a oportunidade de revermos tudo aquilo que o Cinema pode ser. E tudo aquilo que é. E o que ainda vai ser.

8.4.07

300 - O Filme - Coming Soon?

Nível 1
Os Espartanos combatem soldados normais sem quaisquer poderes especiais.


Nível 2
Os mesmos soldados, mas que agora já têm direito a cavalos, aumentando o nível de dificuldade.


Nível 3
A dificuldade aumenta ainda mais. Agora os inimigos dos Espartanos são conhecidos por serem imortais. Mas será que são?

Neste terceiro nível, até já há direito, no final, a um extra:
boss level.


Nível 4
Aqui o boss level vem no início, e já é maior que o do nível anterior. É preciso matá-lo para aceder ao quarto nível.

Depois de se conseguir derrotar os imortais, os novos inimigos já têm um poder extra: o da magia.


Nível 5
Antes de chegar ao nível final, vem ainda mais um exército. As bestas são, imagine-se, maiores que as anteriores.


Nível 6
Nível final, com uma misturada de todos os inimigos que o gamer teve que enfrentar até aí.

O boss está presente, mas dada a dificuldade deste, o objectivo para se chegar ao fim é apenas conseguir retirar-lhe um pouco de vida, sem ser necessário matá-lo.

O video-jogo está concluído. Para quando a estreia do filme?

Ou voltamos agora às desculpas de quando estreou o péssimo (mas não tanto) Sin City? "Argumento esquemático? Mas é BD!" Não é BD, não. É cinema. Mau cinema.

5.4.07

Stranger Than Paradise

São mais imagens do que texto, é verdade, mas propositadamente. Porquê? Desde logo, porque acabei de o ver há pouco, na Cinemateca, e as palavras para falar de filme tão dirigido ao interior de cada espectador ainda escasseiam. Depois, é também um filme mais de imagens do que de palavras. E são de um desencanto enorme, estas imagens, e as personagens que lá habitam, cansadas da repetição do quotidiano; das mesmas coisas, das mesmas pessoas, dos mesmos lugares. Até chegar a um ponto em que até as coisas novas parecem as mesmas. ("You know, it's funny... you come to someplace new... and everything looks just the same.") Até os sorrisos parecem desencantados e tristes. (Aquela cena em que Willie compra óculos de sol iguais para todos...) Até nos momentos de maior desespero, parece nem haver forças para o demonstrar. (Como quando perdem todo o dinheiro e passeiam calmamente na praia...) Só há um niilismo que tudo ofusca e que a tudo se sobrepõe. (E não me esqueço daquela imagem de solidão de Eva sentada ao pé da praia... a última deste post.)

2.4.07

Poesia Visual



Em semana de estreia da nova obra de David Lynch – «Inland Empire» – (que aposto, desde já, para filme do ano), vale a pena recuar exactamente 10 anos e relembrar esse espantoso filme que é «Lost Highway».

Sugiro, mais concretamente, que se atente na cena supra, seguramente uma das mais sublimes e belas da década passada. Nela podemos ver a arte de Lynch em todo o seu esplendor: uma verdadeira poesia visual de luzes e sombras! Ou melhor, um poema onde dois corpos constroem rimas feitas de luz e de sombra. Dois corpos? Na verdade, apenas um: o de Patricia Arquette (aplausos de admiração), que tudo domina e manipula. Ela é aqui, claramente, o centro gravitacional do nosso olhar.

Esta cena permite-nos, ainda, verificar que a capacidade sedutora de David Lynch está também na forma como nos faz regressar permanentemente a duas interrogações essenciais: 1) A que dimensão pertencem as imagens que vemos (real, onírica ou outra)? 2) O que se esconde por trás delas? Interrogações essas que coexistem sempre com o prazer estético do olhar, numa dialéctica que tem tanto de deslumbrante como de desconcertante.

Os ambientes meticulosamente criados por Lynch fascinam-nos com a sua paradoxal construção: são misteriosos e arrepiantes, por um lado, e sensuais, por outro. E daí nasce uma desconcertante ambiguidade que nos faz caminhar permanentemente no limite, tacteando cada nova imagem e cada novo som em busca da suprema compreensão das coisas.

1.4.07

Dekalog 1

I Am The Lord Thy God: Thou Shalt Have No Other God But Me (52.55)

"It should not be out of place to observe that they have the very rare ability to dramatise their ideas rather than just talking about them. [...] They do this with such dazzling skill, you never see the ideas coming and don't realize until much later how profoundly they have reached your heart."

É talvez a citação mais famosa a propósito desta série de dez episódios, pensada inicialmente para um filme de 10 horas. A citação é de Stanley Kubrick, e o
they a que o realizador de 2001: A Space Odyssey se refere é obviamente a Krzysztof Kieslowski e ao seu co-argumentista (não só desta série, mas também das conceituadas obras que se seguiram - La Double Vie de Véronique e os filmes da Trilogia das Cores) Krzysztof Piesiewicz.

E, de facto, Kubrick diz tudo nestas duas frases.
Dekalog baseia-se em cada um dos Dez Mandamentos, mas o objectivo de Kieslowski não é falar sobre o seu significado, mas usá-los apenas como ponto de partida para abordar valores morais universais, através de situações concretas. Em que se baseiam as imagens que estamos a ver até acaba por ser irrelevante. Repare-se que Kieslowski nem sequer nos diz de que trata o Mandamento em que cada episódio se baseia, como fiz eu no início deste texto. Isto porque, essencialmente, de onde tudo parte é das relações humanas e dos problemas e sentimentos que lhe estão subjacentes.

"Tudo
parte das relações humanas", disse eu. Sim, parte, porque em Kieslowski nunca há só seres humanos que se relacionam entre si, mas sobretudo a forma como estes, por sua vez, se relacionam com aquilo que transcende a sua (nossa?) compreensão. É claro que, falando de La Double Vie de Véronique ou de Trois Couleurs: Rouge, essa abordagem é óbvia. Mas é quase sempre possível encontrar em Kieswloski, seja de forma mais óbvia ou menos óbvia, algo de divino. Não necessariamente religioso, no sentido corrente da palavra, mas de divino e de transcendente. Ou seja, Kieslowski vai buscar uma questão anterior: porque nos relacionamos com determinada(s) pessoa(s)?, talvez seja uma forma de a colocar. Ou, relacionado de forma mais concreta com o primeiro episódio de Dekalog, fará mais sentido perguntar: de que forma é que aquilo que não compreendemos pode afectar a nossa relação com o(s) outro(s)?

Pawel, uma criança muito inteligente, é educado pelo pai desde cedo sobre questões lógico-matemáticas, com auxílio de um computador que usam para calcular, por exemplo, a dureza do gelo do exterior. A sua tia, por outro lado, acredita que o rapaz deve ter também acesso a uma educação religiosa. Mais uma vez, as questões levantadas serão as mesmas, mas este primeiro episódio fala-nos essencialmente daquilo que para a ciência e para nós é imprevisível, consequência da aleatoriedade de certos aspectos do mundo e da vida, o que torna impossível prever tudo de forma exacta. Kieslowski reconhece essa impossibilidade, e, como tal, aborda esse lado transcendente precisamente dessa forma: reconhecendo-o sem o tentar compreender. É nesse sentido que não há nada de religioso em Kieslowski: não se procuram respostas para o incompreensível, mas apenas reconhecê-lo como tal; como transcendente da compreensão humana.