De Palma por dentro e por fora
Brian De Palma sofre de um estranhíssimo estigma, recorrente em quase todos os circuitos cinéfilos que lhe reconhecem uma espécie de astúcia de aluno dedicado e estudioso dos grandes mestres, reduzindo a sua obra a uma colecção de imitações de outras filmografias (tipicamente a de Hitchcock). Tão imitador quanto o foi Scorsese de Powell? Ou, mais recentemente, PT Anderson de Altman? Existe um rigor quase idiossincrático na mise-en-scène de DePalma que o coloca instantaneamente no exterior de qualquer rótulo que lhe queiramos impor; uma forma obsessiva de filmar os corpos como se fossem parte de um perturbante jogo de seduções entre as imagens e o espectador. Existe um diálogo erótico que se esconde nas suas imagens e que nos coloca constantemente na insegurança do nosso próprio papel enquanto espectadores. Na verdade, De Palma é um fascinante experimentalista da nossa relação com as imagens, relembrando, a cada fotograma, que uma imagem pode exigir a sua própria sinopse e impedir que a narrativa de um filme seja a exclusiva proprietária do direito de fazer avançar a história.
Sobre «Black Dahlia». Essa relação com o storytelling visual existe, mais do que nunca, na relação com os olhares das personagens, com as suas tragédias pessoais e a insegurança das suas certezas. Olhando para «Black Dahlia» - durante e depois – é, antes do mais, sentir que De Palma nos conseguiu colocar na errância do seu protagonista, impondo-nos a sua obsessão e a sua impossibilidade de querer controlar o mundo à sua volta. Em boa verdade, existem alturas em «Black Dahlia» que o mundo (a história) nos parece fugir, tanto mais quanto as próprias imagens não parecem querer dizer tudo; parecem, pelo contrário, ocultar a verdade indiscutível da sua identidade.
A única verdade que conhecemos é a morte e a ilusão de a podermos olhar como princípio para conhecermos a vida. A vida de quem? De Elizabeth Short, a enigmática jovem cuja morte nos fôra vedada, mostrando-nos apenas pequenos fragmentos da sua vida sob a forma de screentests que De Palma orienta com a perversidade desconcertante da sua voz. De facto, a invisibilidade da sua voz torna-o uma presença tanto mais perturbante quanto sentimos que ela – Elizabeth Short – parece perder o seu olhar (e a sua vida) numa contracenação com ele – o realizador – devolvendo-nos a nós (espectadores) a cumplicidade perturbante da sua vida (e da morte). Porquê? Porque é bom não esquecer que o olhar dela nos encontra apenas a nós, espectadores da sua vida. É esta ambiguidade visual que torna as imagens de «Black Dahlia» tão fascinantes; quem está a olhar para ela? É o realizador ou somos nós? E ela, para quem olha de forma tão cândida e decidida? Os nossos olhares cruzam-se, por diversas vezes, e a minha ingenuidade descansa ao assistir à interpretação que ela faz do discurso que Vivien Leigh celebrizou no papel de Scarlett O’Hara em «E tudo o Vento Levou». Rapidamente, a minha ingenuidade se perverte e deixa-se tomar pela consciência de estar a olhar para uma candura que já pouco preservava da inocência que lhe parecia pertencer.
E é desta ambiguidade que «Black Dahlia» se constrói. De Palma nunca foi um cineasta literário, isto é, nunca achou que as suas imagens tinham de pertencer a uma lógica literária dos acontecimentos e do mundo. Relembremos o seu filme anterior - «Femme Fatale» - onde o seu formalismo ditava os princípios de um outro mundo, com lógicas exteriores a qualquer vontade fugaz de lhe querermos impor um sentido. «Black Dahlia» preserva esse desejo formal de desafiar as imagens e convenções que guardamos do mundo, mas reserva um olhar próximo aos policiais noir dos anos 40, com De Palma a revisitar esse tempo específico com a experimentação e o risco suficientes para invalidarem a possibilidade de um mero pastiche mais ou menos interessante. Prova, aliás, desse arrojo tem a ver com o casting do filme: Josh Hartnett, cuja aparência limpa e ingénua parece redimi-lo da posição de herói; Hillary Swank que se decompõe laboriosamente no papel da anti-mulher fatal, numa inversão notável de papéis com Scarlett Johnasson – seria uma aposta bem mais segura para a tradicional femme fatale, que acaba aqui por utilizar a sua perversa sensualidade como tragédia inconsciente da sua presença na história. Dito por outras palavras: enquanto se sente em Swank uma invulgar fatalidade na sua presença feminina, Scarlett perverte a imagem da dona de casa bem comportada, baralhando os códigos e as expectativas. Nada no cinema de Brian De Palma é o que parece, nem as suas imagens, nem os códigos que ele tão injustamente é acusado de copiar.
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