7.10.06

Mitologia vs Humano

Caro João Ricardo,

Uma vez que aceitaste o meu pequeno desafio de termos um debate frente a frente, vou respeitar também a organização estruturada do teu texto e responder-te a cada ponto, individualmente:

1 – Respondendo ao teu terceiro ponto, devo dizer que tenho alguma dificuldade em rever-me na dialéctica que Shyamalan pretende impor nesta fábula. Curiosamente porque me parece uma dialéctica muito distante da que o cineasta, geralmente, procura. «Lady in the Water» tem, a meu ver, mais fascínio pela mitologia (pela possibilidade de existir um «divino») que pela humanização das pessoas perante essa possibilidade. As próprias personagens parecem-me estar limitadas a uma estranha letargia automatizada de acções e reacções (e disso, também me parece que a personagem de Shyamalan é particularmente reveladora), seja na crença imediata e muito pouco sustentada, como já tinha explicitado no meu texto, da personagem do Giamatti, ou mesmo no esquematismo redundante do argumento, gastando metros de película com um jogo de plataformas. Nesse jogo pretende encontrar-se o grupo certo, a disposição certa das peças, as leituras correctas das mensagens do universo e, de repente, apercebemo-nos que tudo falha, é preciso reconstruir o grupo, reler tudo, etc. E, no meio destes jogos, o humano no filme fica resumido a uma série de peripécias e pensamentos sobre a resolução de puzzles efabulados. Pontualmente, Shyamalan regressa à sua sensibilidade e ao seu fascínio pelas fragilidades dos seus actores (desde a apresentação dos condóminos no início, passando pelos primeiros diálogos entre Cleveland e Story, culminando no belíssimo momento de renascimento). Mas são fragmentos pontuais de uma história muito mais preocupada com a exploração da sua mitologia do que com a reconstrução afectiva e humana que a presença mitológica pode impor ao ser humano. É neste sentido que digo que Shyamalan quer desesperadamente que o espectador acredite na mitologia. Perde demasiado tempo a explicá-la. Não era necessário, bastava colocar-nos na intimidade das suas personagens... uma vez lá, acreditamos no que eles acreditam (e na sua coerência).

2 – Parece-me que estás a fazer uma leitura demasiado minimalista do “porquê”. Eu creio que o porquê existe antes de existir o “o quê”. Porquê? Porque a necessidade de acreditar não tem apenas a ver com o objecto de crença, mas sobretudo com a natureza de sermos humanos. Porque somos humanos, sentimos fascínio pelo desconhecido. A partir daí somos capazes de gerar as nossas próprias crenças... aliás, várias foram as religiões que foram criadas ao longo de séculos. Várias fábulas e mitos saíram da nossa imaginação, da nossa necessidade de darmos uma imagem ao desconhecido. Isto pode parecer a história do ovo e da galinha e, em última instância, pouco interesse teria para a nossa discussão, não fosse tu teres referido que o “porquê” te parecia mais um ponto de chegada e que a questão deveria ser “em quê”. Espero deixar assim a minha posição bem esclarecida.

3 – Bom, a questão do monstro como já te tinha dito na minha resposta, é uma fraca referência para sustentar ou favorecer qualquer processo de convencimento. No limite, isto até era fácil de conseguir, até porque o processo de convencimento não é uma metodologia abstracta e universal; ela depende, necessariamente, do «sujeito a convencer». Spielberg, em «ET» sabia que teria esse problema, por isso a saída mais realista era contar a história apenas com crianças. Em «Encontros Imediatos», não só Spielberg coloca as suas personagens em contacto visual directo com os ovnis como, além disso, imprime nelas uma espécie de convite divino a descobrirem o desconhecido. E é este tipo de trabalho de argumento que faltou a «Lady in the Water». Tu dizes que Shyamalan optou por não mostrar essas imagens. Achas que é um mérito artístico. Eu sou da opinião contrária, foi dessas imagens que senti mais falta. Estava muito mais interessado em ver como as pessoas reagiam à história mirabolante daquela bela menina subaquática, do que propriamente em acompanhar os enigmas das caixas de cereais ou as plataformas que eles vão subindo para resolver o puzzle e reenviar a Story para a sua liberdade. Lembras-te que em «ET» existia também uma metodologia para reenviar o pequeno extraterrestre para a sua casa e envolvia um engenhoso mecanismo telefónico cujo funcionamento o filme nunca explica. Será que interessava? Será que interessava saber a estruturação do grupo de humanos que pode ajudar a Story? Interessa saber que há um curandeiro que atrai borboletas? Ou que existe um intérprete? Parecem-me detalhes algo secundários numa história com ambições dramáticas bem superiores. E, no entanto, esses pormenores parecem consumir grande parte da narrativa.

4 – Quanto à honestidade do Shyamalan, julgo que ele acredita totalmente na história que contou. E o que torna a sua honestidade mais comovente são as melhores intenções do mundo que se escondem nas suas imagens. Creio que falha o compromisso com a verdade sobretudo porque é preciso mais que acreditar numa história para se chegar à complexidade que qualquer verdade encerra. Talvez a mitologia seja elaborada, mas o dispositivo humano que nela se passeia está longe de ter recebido a mesma atenção.

5 – Para sermos precisos as minhas palavras exactas foram: «Eu acredito que tu adores o filme. Eu não acredito no filme.» Que diferença essencialmente conceptual está aqui envolvida? O conceito da diferença. Mais do que isso: acreditarmos nessa diferença. Será que Harry Farber acredita na diferença? Bom, é dificil formularmos hipóteses sobre personagens que apenas parecem pavonear o seu mais popular estereótipo. E o mais desconcertante é que me parece ser das personagens mais interessantes do filme (até porque o resto dos secundários nem estereótipos chegam a ser...). Depois de ver o filme, não sei o que é que terá suscitado o interesse de Shyamalan nesta história. Percebo porquê, mas não consigo perceber em quê. Mas ele seguramente perceberá... e os admiradores do filme também.

abraço,

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