Acreditar em quê?
Tiago Pimentel expôs em baixo, com a clareza e a inteligência que lhe reconhecemos, as enormes reticências que tem em relação a «Lady in the Water», a mais recente obra-prima de M. Night Shyamalan.
Sem prejuízo de um debate mais aprofundado sobre o assunto, deixo aqui alguns tópicos de “resposta” (as aspas pretendem acentuar a ideia de que não há verdadeiramente uma resposta a uma opinião, mas apenas a introdução de argumentos que sustentem uma visão diversa sobre a mesma matéria cinematográfica).
A questão nuclear que o Tiago coloca no seu texto – bem presente, aliás, no título do mesmo – prende-se com as razões que levam (a nós e às personagens) a acreditar. É um ponto de partida interessante, embora no presente caso me pareça, inevitavelmente, o reflexo de um ponto de chegada. Ou, dito de outro modo: a interrogação que o Tiago coloca não me parece verdadeiramente um ponto de partida, mas antes a tentativa de justificação de um outro dado, com o qual apenas ele pode lidar: ele não acreditou!
Mas importa ir um pouco mais longe e, antes de perguntar pelo “porquê”, indagar sobre o “quê”. Ou seja, perguntar: “acreditar em quê?” em vez de “acreditar porquê?”. Não se trata de um mero jogo de palavras, mas sim de lançar as bases para uma análise aprofundada da obra. Porque, de facto, antes de nos questionarmos sobre se acreditamos em algo devemos saber em que acreditar, para onde dirigir a nossa fé. É, assim, legítima a questão: quando o Tiago se interroga sobre se devemos acreditar ou se nos são dadas razões para acreditar, refere-se concretamente a quê? A resposta que se retira do texto – acreditar na fábula que Shyamalan nos conta – só aparentemente é satisfatória: o que significa, afinal, acreditar numa fábula? É acreditar que é real? É acreditar que pode ser real? Ou é, ao invés, acreditar nas implicações morais e/ou simbólicas que dela derivam? Ou será, ainda, acreditar que as personagens acreditam ou que naquele contexto podem acreditar?
Bem se percebe que por trás da simples interrogação “acreditar porquê?” mora uma complexidade que não se compatibiliza com respostas mais ou menos esquemáticas. A interrogação “acreditar porquê?”, que norteia todo o texto do Tiago, surge, desta forma, destituída das bases necessárias para que seja verdadeiramente respondida. É, bem se percebe, o tal efeito de reflexo que deriva de um afastamento subjectivo da obra.
Passemos, então, às personagens. Porque para o Tiago parece ser inverosímil (ou, pelo menos, negligentemente explicitado) que aquelas personagens acreditem que uma narfa lhes habita o condomínio. Ora, esta ideia – que é uma ideia fundamental no texto – é que me parece pouco sustentada, quando não mesmo adulterada em detrimento de um conjunto de conclusões redutoras que não têm em conta a enorme complexidade dramática da obra, bem como o seu tempo narrativo.
Exemplo dessa adulteração está nesta interrogação do Tiago: “Porque é que a personagem de Paul Giamatti acredita imediatamente que ela é uma narfa que foge de uns monstros que se escondem na relva e parte em busca instantaneamente de um alegado escritor que ela procura?”. Ora, quem já olhou com atenção para o filme sabe perfeitamente que este dado, que o Tiago parece dar como objectivo, está longe daquilo que as imagens nos mostram. De lado nenhum me parece ser lícito retirar que a personagem de Paul Giamatti acredita imediatamente que tem uma narfa em casa. Bem pelo contrário. O que vemos é todo um processo de convencimento e nunca uma conversão imediata. Aliás, ele começa por reconduzir, muito naturalmente, ao real a narfa e todos os dados disponíveis sobre ela: toma-a a ela como uma miúda e o “blue world” como um apartamento ou condomínio. É à medida que essa recondução ao real perde sentido que se começa a acreditar em algo para além do real (ou, se se preferir, noutro real). Esta evolução é perfeitamente lógica no contexto da fábula e é plenamente sustentada do ponto de vista dramático. Ilógico e pouco produtivo seria prolongar (ou explicitar) as dúvidas, até porque quando se é perseguido por um monstro, se deve questionar imediatamente o real (e note-se que Shyamalan, numa inteligentíssima elipse, corta do plano da porta a fechar-se para um outro plano, já de dia, em que se procuram vestígios do “animal” que o havia perseguido na noite anterior).
Em todo o caso, parece-me importante sublinhar que acreditar em algo é sempre um acto de fé. E que um acto de fé, precisamente por ser de fé, não se compadece com a ideia de processo de aprendizagem característica do saber. Nesse sentido, mesmo que a personagem de Paul Giamatti acreditasse imediatamente que estava perante uma narfa, em nada sairia abalada a lógica inerente à crença. Não faltam casos por esse mundo fora em que uma “aparição” convoca imediatamente uma crença.
E as restantes personagens da história? Bom, quanto a essas a questão parece-me mais simples: Shyamalan optou por não filmar expressamente a reacção imediata dos habitantes do condomínio à história de Story, que a personagem de Paul Giamatti lhes ia contanto. Em todo o caso, aqui a lógica é outra: trata-se, numa primeira fase, duma crença que surge mediada por um terceiro – a personagem de Paul Giamatti –, pelo que será pertinente perguntar se os restantes habitantes não acreditarão também porque a personagem de Paul Giamatti acredita…
Sem prejuízo de outras questões suscitadas pelo Tiago, parece-me ainda pertinente atentar na palavra honestidade, que o Tiago utiliza por diversas vezes. Reconhecendo que habita em «Lady in the Water» uma enorme honestidade, o Tiago contrapõe depois uma ideia de verdade. Concordo que são duas expressões distintas. Mas parece-me algo contraditório dizer-se que Shyamalan é genuinamente honesto a contar esta história e ao mesmo tempo invocar que falha o compromisso da verdade por não acreditar nas suas personagens e na história que conta: se se conta algo em que não se acredita não se é honesto. Pela minha parte, creio que Shyamalan acredita profundamente na sua história e nas suas personagens. E o que nos mostra é, precisamente, o seu olhar, em toda a sua complexidade: apresenta-nos a sua verdade! Uma verdade bela e inspiradora.
Sem prejuízo de um debate mais aprofundado sobre o assunto, deixo aqui alguns tópicos de “resposta” (as aspas pretendem acentuar a ideia de que não há verdadeiramente uma resposta a uma opinião, mas apenas a introdução de argumentos que sustentem uma visão diversa sobre a mesma matéria cinematográfica).
A questão nuclear que o Tiago coloca no seu texto – bem presente, aliás, no título do mesmo – prende-se com as razões que levam (a nós e às personagens) a acreditar. É um ponto de partida interessante, embora no presente caso me pareça, inevitavelmente, o reflexo de um ponto de chegada. Ou, dito de outro modo: a interrogação que o Tiago coloca não me parece verdadeiramente um ponto de partida, mas antes a tentativa de justificação de um outro dado, com o qual apenas ele pode lidar: ele não acreditou!
Mas importa ir um pouco mais longe e, antes de perguntar pelo “porquê”, indagar sobre o “quê”. Ou seja, perguntar: “acreditar em quê?” em vez de “acreditar porquê?”. Não se trata de um mero jogo de palavras, mas sim de lançar as bases para uma análise aprofundada da obra. Porque, de facto, antes de nos questionarmos sobre se acreditamos em algo devemos saber em que acreditar, para onde dirigir a nossa fé. É, assim, legítima a questão: quando o Tiago se interroga sobre se devemos acreditar ou se nos são dadas razões para acreditar, refere-se concretamente a quê? A resposta que se retira do texto – acreditar na fábula que Shyamalan nos conta – só aparentemente é satisfatória: o que significa, afinal, acreditar numa fábula? É acreditar que é real? É acreditar que pode ser real? Ou é, ao invés, acreditar nas implicações morais e/ou simbólicas que dela derivam? Ou será, ainda, acreditar que as personagens acreditam ou que naquele contexto podem acreditar?
Bem se percebe que por trás da simples interrogação “acreditar porquê?” mora uma complexidade que não se compatibiliza com respostas mais ou menos esquemáticas. A interrogação “acreditar porquê?”, que norteia todo o texto do Tiago, surge, desta forma, destituída das bases necessárias para que seja verdadeiramente respondida. É, bem se percebe, o tal efeito de reflexo que deriva de um afastamento subjectivo da obra.
Passemos, então, às personagens. Porque para o Tiago parece ser inverosímil (ou, pelo menos, negligentemente explicitado) que aquelas personagens acreditem que uma narfa lhes habita o condomínio. Ora, esta ideia – que é uma ideia fundamental no texto – é que me parece pouco sustentada, quando não mesmo adulterada em detrimento de um conjunto de conclusões redutoras que não têm em conta a enorme complexidade dramática da obra, bem como o seu tempo narrativo.
Exemplo dessa adulteração está nesta interrogação do Tiago: “Porque é que a personagem de Paul Giamatti acredita imediatamente que ela é uma narfa que foge de uns monstros que se escondem na relva e parte em busca instantaneamente de um alegado escritor que ela procura?”. Ora, quem já olhou com atenção para o filme sabe perfeitamente que este dado, que o Tiago parece dar como objectivo, está longe daquilo que as imagens nos mostram. De lado nenhum me parece ser lícito retirar que a personagem de Paul Giamatti acredita imediatamente que tem uma narfa em casa. Bem pelo contrário. O que vemos é todo um processo de convencimento e nunca uma conversão imediata. Aliás, ele começa por reconduzir, muito naturalmente, ao real a narfa e todos os dados disponíveis sobre ela: toma-a a ela como uma miúda e o “blue world” como um apartamento ou condomínio. É à medida que essa recondução ao real perde sentido que se começa a acreditar em algo para além do real (ou, se se preferir, noutro real). Esta evolução é perfeitamente lógica no contexto da fábula e é plenamente sustentada do ponto de vista dramático. Ilógico e pouco produtivo seria prolongar (ou explicitar) as dúvidas, até porque quando se é perseguido por um monstro, se deve questionar imediatamente o real (e note-se que Shyamalan, numa inteligentíssima elipse, corta do plano da porta a fechar-se para um outro plano, já de dia, em que se procuram vestígios do “animal” que o havia perseguido na noite anterior).
Em todo o caso, parece-me importante sublinhar que acreditar em algo é sempre um acto de fé. E que um acto de fé, precisamente por ser de fé, não se compadece com a ideia de processo de aprendizagem característica do saber. Nesse sentido, mesmo que a personagem de Paul Giamatti acreditasse imediatamente que estava perante uma narfa, em nada sairia abalada a lógica inerente à crença. Não faltam casos por esse mundo fora em que uma “aparição” convoca imediatamente uma crença.
E as restantes personagens da história? Bom, quanto a essas a questão parece-me mais simples: Shyamalan optou por não filmar expressamente a reacção imediata dos habitantes do condomínio à história de Story, que a personagem de Paul Giamatti lhes ia contanto. Em todo o caso, aqui a lógica é outra: trata-se, numa primeira fase, duma crença que surge mediada por um terceiro – a personagem de Paul Giamatti –, pelo que será pertinente perguntar se os restantes habitantes não acreditarão também porque a personagem de Paul Giamatti acredita…
Sem prejuízo de outras questões suscitadas pelo Tiago, parece-me ainda pertinente atentar na palavra honestidade, que o Tiago utiliza por diversas vezes. Reconhecendo que habita em «Lady in the Water» uma enorme honestidade, o Tiago contrapõe depois uma ideia de verdade. Concordo que são duas expressões distintas. Mas parece-me algo contraditório dizer-se que Shyamalan é genuinamente honesto a contar esta história e ao mesmo tempo invocar que falha o compromisso da verdade por não acreditar nas suas personagens e na história que conta: se se conta algo em que não se acredita não se é honesto. Pela minha parte, creio que Shyamalan acredita profundamente na sua história e nas suas personagens. E o que nos mostra é, precisamente, o seu olhar, em toda a sua complexidade: apresenta-nos a sua verdade! Uma verdade bela e inspiradora.
1 comment:
Seria de esperar que as verdades da vida nos fossem transmitidas por anciões, alguém cuja experiência de vida, lhes permitisse, com segurança, levar-nos pela mão ao caminho seguro da aprendizagem.
Night Shyamalan, um jovem ainda, apresenta-nos a Fé, a Fé que no fim das contas nos pode salvar. Não nos salavrá da morte certa, mas poderá, com toda a certeza,salvar-nos do marasmo de vivermos alheados do mundo que nos rodeia. Acreditar que, a união, em torno das coisas mais inverosímeis,poderá criar uma força que ultrapassará o racional ou o plausível. A Fé porque queremos que ela nos invada e nos faça sentir a salvo do modo Random do Mundo. Nada é preto no branco e nada acontece por acaso. Crer nisto é ter Fé.
Tinhas razão João, gostei muito.
Cláudia Portas
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