Serpentes ou lesmas?
Esta semana estreou em Portugal o hiper-mediatizado Snakes on a Plane, filme que tanto deu que falar antes mesmo de estar concluido devido ao inesperado êxtase de uma comunidade cibernáutica ansiosa por ver as suas fantasias com ofídios venenosos registadas para sempre num filme memórável. Mas a mordidela virou-se contra a serpente: longe de ser memorável (embora o culto, esse sim, esteja garantido), Snakes... é um filme deslumbrado pelo seu conceito tão absurdo quanto potencialmente eficaz, mas que carrega em demasia o efeito cartoonesco das personagens e situações, forçando o burlesco quando ele deveria brotar naturalmente da acção. O que não impede que o filme não resulte por vezes, conseguindo a espaços ter uma notável tensão cómica e um ritmo delirante e imaginativo, infelizmente não acompanhados por um suspense muito desinspirado que culmina num desapontante final que, a bem dizer, quase não existe. Claro que talvez fosse impossível exigir essa aliança eficaz a um filme desta natureza... Ou talvez não!
Desviemos o olhar para Slither, obra de 2006 ainda inédita por cá, apesar de em tempos ter estado prevista a sua estreia em sala sob o (aborrecido) título "Os Novos Invasores", mas que já está contudo disponível em boas edições DVD em vários países. Em poucas palavras, tudo o que em Snakes... falha resulta aqui quase na totalidade, conseguindo o realizador e argumentista James Gunn criar um verdadeiro série B, no espírito dos melhores do género, sem nunca expor a sua obra a um ridículo desnecessário. O argumento é anoréctico, como aliás se exigia: lesmas espaciais caem numa vila do Sul dos EUA por via de um meteorito e cedo reiniciam o seu peculiar (e asqueroso) ciclo de vida, reunindo-se um grupo de personagens na luta pela sobrevivência e eliminação da catástrofe. Nada de novo, portanto...
Mas tudo se conjuga eficazmente, pela economia do argumento, pela realização, pelos efeitos especiais orgânicos, por uma extraordinária capacidade de visualização e pela demente imaginação de todo o conceito. Gunn, na ressaca da sua muito bem sucedida reimaginação do clássico Dawn of the Dead, presta aqui homenagem aos grandes filmes do género, da trilogia zombie de Romero a Alien, de Invasion of the Body Snatchers a The Fly, nunca pretendendo atingir altos níveis de complexidade temática mas antes um emocionante entretenimento de horror old school, que tanto brilha no seu excesso de vísceras e corpos deformados como na criação de eficazes momentos de suspense e humor de situação (magnífica, nesse sentido, a cena em plano subjectivo na banheira). No elenco, atenção a Michael Rooker, numa "deliciosa" composição (ou decomposição, depende do ponto de vista!) que em muito faz lembrar o redneck de Vincent d'Onofrio em Men in Black. Apenas um ponto negativo que lamentavelmente aproxima Slither de Snakes...: o sub-aproveitamento das capacidades cómicas dos seus actores principais, no último caso Samuel L. Jackson, no primeiro o brilhante Nathan Fillion, o capitão Mal de Serenity e Firefly. Este, se tem dois ou três momentos hilariantes e continua a fazer rir com a serenidade da sua expressão perante o desenrolar dos acontecimentos, na maior parte do tempo é apenas um herói de acção quando se anunciava um grande herói cómico de acção; o comic relief é em grande parte proporcionado por Gregg Henry, actor fétiche de De Palma, num mayor rabujento que ganha a Samuel L. Jackson no uso inspirado do calão.
Em suma, se as serpentes vão ser as mais faladas no próximo balanço do terror cinematográfico, são para já as lesmas a ocupar o lugar de estrelas mais horripilantemente fascinantes a rastejar em película este ano.
1 comment:
Tal como a maioria (basta confirmar nos sites da especialidade, como IMDB), eu achei Snakes on a Plane num patamar bastante superior ao Slither, em termos de "mau" cinema.
Se Slither pode ser melhor como cómico-trágédia, SoaP é superior no geral. Mas desde que agora não inventem um "Lesmas a Bordo", eu já me dou por contente.
Parabéns pelo blogue, está com um ritmo e qualidade espetacular.
Cumprimentos!
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