A religião, os dogmas e o cinema.
Caro João Ricardo,
Espero que não fiques incomodado por te dirigir esta minha resposta na primeira pessoa. Sem prejuízo por outros discursos dignos que implicam necessariamente comunicar com os formalismos adequados (alguns desses discursos tu conheces bem da tua área profissional), creio que, tanto este espaço como a relação de amizade que temos, nos permitem ultrapassar essa distância profissional e comunicarmos como se, de facto, estivéssemos os dois na mesma sala. Antes de mais, deixa-me relembrar-te que a minha questão sobre o porquê de acreditarmos tem a ver com uma abstracção necessária da minha parte (é bom não esquecer que a abstracção tem, em última análise, a ver com a formulação de hipóteses). É uma expressão que norteia a filosofia há vários séculos e tem sempre a ver com o questionamento inesgotável da realidade que recebemos. A capacidade de perguntarmos sempre “porquê?” permite-nos partir sempre de um princípio (a pergunta), para chegarmos então a um fim (a resposta... que em boa verdade, poderá dar origem a nova(s) pergunta(s) e por aí fora), ao contrário do que defendes no teu texto, mas seguramente serás capaz de concretizar. De facto, eu não acreditei. Tu acreditaste. Ambos partilhamos o mesmo ponto de partida: porquê?
Porquê a necessidade de perguntarmos porquê? (asseguro-te que, novamente, pretendo com esta questão colocar-me num ponto de partida para te clarificar a minha posição) Porque, de facto, parece-me (e sei que partilhas da minha opinião) que a única forma de sermos honestos com a nossa verdade e com as nossas emoções (seja no cinema, ou em qualquer situação) é pensarmos sempre sobre elas. Interrogarmos as nossas lágrimas e os nossos sorrisos permite-nos aprender a lidar com a nossa própria complexidade. E em «Lady in the Water» essa necessidade de racionalizar (esta palavra é tão mal amada...) pareceu-me tanto mais fundamental quanto me apercebi que estava a ver um filme que tanta coisa parecia bater certo (a realização era fascinante, a entrega dos actores soberba e todo fascínio pelo fantástico enquadrava-se numa lógica que, pessoalmente, sempre me foi muito próxima) e, no entanto, a minha distância em relação ao filme aumentava drasticamente a cada fotograma. Porquê? Por uma série de razões que enunciei no meu texto e que, como compreenderás, não irei reproduzir. Em boa verdade, o caso de «Lady in the Water» parece-me evidente de uma vontade quase dogmática do autor em colocar o espectador a acreditar na sua fábula e, também por isso, torna-se mais fundamental do que nunca interrogarmo-nos sobre o seu dogma.
«O que significa, afinal, acreditar numa fábula?» O mesmo, claro, que acreditar em qualquer história. O caso deste filme de Shyamalan parece-me apenas mais gritante por consequência dogmática da sua relação com o fantástico, lidando com ele como se se tratasse de uma religião previamente instituída, em vez de uma realidade a construir (com todos os cuidados narrativos que lhe estariam subjacentes), reduzindo o fantástico (e o divino) a um monólogo dogmático e o espectador a um crente inquestionável da sua fé. De facto, é essa “arrogância” que me distancia do filme; isto é, pensar que o único papel do espectador é acreditar... porque todos no filme parecem fazê-lo. Perguntas se o facto de acreditarmos, ou não, tem a ver com as implicações morais da história. Em boa verdade, creio que a moral depende sempre de opções complexas... no olhar, no sentir, na forma de contarmos uma história. A moral de «Lady in the Water» lembra-me um pouco aqueles contos soltos da Bíblia (o capítulo do Adão e Eva, por exemplo) que se ensinam na catequese aos miúdos e que qualquer adulto responsável sabe que a sua crença no divino e no espiritual não se constrói (nem depende) deles. A construção da fé tem sempre a ver com algo mais que uma «punchline» moral; tem a ver necessariamente com a nossa disponibilidade para questionarmos a nossa relação com o desconhecido. Dito por outras palavras: acreditar porquê? Tu propões uma alternativa: acreditar em quê? Em boa verdade, parece-me que a minha questão é anterior à tua. O porquê é necessariamente abstracto e, como explicitei acima, é a base de qualquer sentimento humano. Por natureza, como sabemos, o ser humano tem tendência para precisar de acreditar no que desconhece para criar um sentido para o seu mundo. Agora, em que é que escolhemos acreditar, é uma interrogação válida, mas posterior (a meio caminho entre o ponto de partida e o de chegada, provavelmente).
«(...) à medida que essa recondução ao real perde sentido que se começa a acreditar em algo para além do real.» Faz sentido, passo a redundância, perguntar então quando é que essa recondução perde sentido. No teu texto fazes esta afirmação com convicção mas não a sustentas. Em vez disso, integras na tua argumentação uma justificação que me parece deslocada: «até porque quando se é perseguido por um monstro, se deve questionar imediatamente o real.» É bom não esquecer que o conceito de monstro me parece muito vago (sobretudo para a primeira imagem que nos é mostrada) para questionarmos o que quer que seja (em última análise, é uma fraca referência para nos colocar de imediato no lado da fé que Shyamalan tanto pretende). De facto, pelo mundo fora não faltam situações de crenças provocadas por aparições e imagens que só as pessoas podem explicar (muitas delas, de facto, são pouco interessantes e, nesse sentido, não dariam uma grande história para um filme). Repara, não coloco nada contra a mitologia em si, apenas à forma como é tão pouco trabalhada a sua integração na realidade do espectador. Tudo, em última análise, depende de um contexto, mas esse contexto tem de ser construído! Nenhum filme se pode arrogar de ter o seu próprio contexto apenas porque habita num determinado género de ficção.
Remeto-te, por breves instantes, para uma conversa que tivemos em privado no msn, onde discutíamos este filme por comparação com o «ET». Apesar de ambos partilharmos da conclusão que são experiências absolutamente distintas, é preciso perceber que o Spielberg tem uma abordagem radicalmente oposta à de Shyamalan. Repara, para Spielberg o lugar de origem do ET não interessa; interessa sim, o lugar afectivo que ele veio preencher. A determinada altura, as próprias crianças debatem o seu lugar de origem (a sua casa que, como viríamos a aprender com o filme, tem pouco de geográfico ou mitológico), sendo que a personagem da pequenina Drew Barrymore até pondera ele ser um animal qualquer. A mitologia de facto era pouco relevante, o que interessava era assistirmos ao preenchimento e mudança real e visível das pessoas tocadas por aquele ser. Em «Lady in the Water» não me parece existir essa preocupação pelas personagens. Parece-me que as personagens existem numa espécie de espectáculo de marionetas, com uma presença meramente simbólica e serviçal em função de uma denúncia moral que Shyamalan pretende impor. O argumento que apresentas do filme escolher não mostrar o processo de convencimento das personagens é, para mim, uma demérito enorme da construção narrativa do filme e do seu imaginário. É que essas imagens que faltam, são precisamente as que mais interessavam: são as reacções humanas e afectivas das pessoas (que, pessoalmente, me interessam mais do que saber o que é que eles conseguem ler nas palavras cruzadas de um jornal ou numa caixa de cereais).
Para terminar, dizes que cometi uma incongruência ao referir a honestidade do filme, ao mesmo tempo que implico que Shyamalan não terá acreditado nas suas personagens e na sua história. Parece-me desconcertante teres concluído esse pensamento, depois de teres caracterizado o meu texto como claro e inteligente. Claramente, inteligência é coisa que nunca poderia habitar num texto com incoerências desse género. Esperando então continuar a merecer a tua estima intelectual, deixa-me clarificar a situação. Logicamente que Shyamalan acredita de forma convicta no imaginário que está a contar. Mas as palavras formam-se também de conotações e denotações e eu acho que, no limite, ele não acreditou nas capacidades humanas das suas personagens. Acredita, sem dúvida, no seu papel e na sua função para a história, mas sem a crença humana que lhe reconhecíamos de outros filmes. Isso faz dele menos honesto? Penso que não. Menos criativo e artístico talvez... Eu acredito que tu adores o filme. Mas eu não acredito no filme. Parece contraditório? Talvez, estamos cá para lidar com as contrariedades da democracia.
Abraço
Espero que não fiques incomodado por te dirigir esta minha resposta na primeira pessoa. Sem prejuízo por outros discursos dignos que implicam necessariamente comunicar com os formalismos adequados (alguns desses discursos tu conheces bem da tua área profissional), creio que, tanto este espaço como a relação de amizade que temos, nos permitem ultrapassar essa distância profissional e comunicarmos como se, de facto, estivéssemos os dois na mesma sala. Antes de mais, deixa-me relembrar-te que a minha questão sobre o porquê de acreditarmos tem a ver com uma abstracção necessária da minha parte (é bom não esquecer que a abstracção tem, em última análise, a ver com a formulação de hipóteses). É uma expressão que norteia a filosofia há vários séculos e tem sempre a ver com o questionamento inesgotável da realidade que recebemos. A capacidade de perguntarmos sempre “porquê?” permite-nos partir sempre de um princípio (a pergunta), para chegarmos então a um fim (a resposta... que em boa verdade, poderá dar origem a nova(s) pergunta(s) e por aí fora), ao contrário do que defendes no teu texto, mas seguramente serás capaz de concretizar. De facto, eu não acreditei. Tu acreditaste. Ambos partilhamos o mesmo ponto de partida: porquê?
Porquê a necessidade de perguntarmos porquê? (asseguro-te que, novamente, pretendo com esta questão colocar-me num ponto de partida para te clarificar a minha posição) Porque, de facto, parece-me (e sei que partilhas da minha opinião) que a única forma de sermos honestos com a nossa verdade e com as nossas emoções (seja no cinema, ou em qualquer situação) é pensarmos sempre sobre elas. Interrogarmos as nossas lágrimas e os nossos sorrisos permite-nos aprender a lidar com a nossa própria complexidade. E em «Lady in the Water» essa necessidade de racionalizar (esta palavra é tão mal amada...) pareceu-me tanto mais fundamental quanto me apercebi que estava a ver um filme que tanta coisa parecia bater certo (a realização era fascinante, a entrega dos actores soberba e todo fascínio pelo fantástico enquadrava-se numa lógica que, pessoalmente, sempre me foi muito próxima) e, no entanto, a minha distância em relação ao filme aumentava drasticamente a cada fotograma. Porquê? Por uma série de razões que enunciei no meu texto e que, como compreenderás, não irei reproduzir. Em boa verdade, o caso de «Lady in the Water» parece-me evidente de uma vontade quase dogmática do autor em colocar o espectador a acreditar na sua fábula e, também por isso, torna-se mais fundamental do que nunca interrogarmo-nos sobre o seu dogma.
«O que significa, afinal, acreditar numa fábula?» O mesmo, claro, que acreditar em qualquer história. O caso deste filme de Shyamalan parece-me apenas mais gritante por consequência dogmática da sua relação com o fantástico, lidando com ele como se se tratasse de uma religião previamente instituída, em vez de uma realidade a construir (com todos os cuidados narrativos que lhe estariam subjacentes), reduzindo o fantástico (e o divino) a um monólogo dogmático e o espectador a um crente inquestionável da sua fé. De facto, é essa “arrogância” que me distancia do filme; isto é, pensar que o único papel do espectador é acreditar... porque todos no filme parecem fazê-lo. Perguntas se o facto de acreditarmos, ou não, tem a ver com as implicações morais da história. Em boa verdade, creio que a moral depende sempre de opções complexas... no olhar, no sentir, na forma de contarmos uma história. A moral de «Lady in the Water» lembra-me um pouco aqueles contos soltos da Bíblia (o capítulo do Adão e Eva, por exemplo) que se ensinam na catequese aos miúdos e que qualquer adulto responsável sabe que a sua crença no divino e no espiritual não se constrói (nem depende) deles. A construção da fé tem sempre a ver com algo mais que uma «punchline» moral; tem a ver necessariamente com a nossa disponibilidade para questionarmos a nossa relação com o desconhecido. Dito por outras palavras: acreditar porquê? Tu propões uma alternativa: acreditar em quê? Em boa verdade, parece-me que a minha questão é anterior à tua. O porquê é necessariamente abstracto e, como explicitei acima, é a base de qualquer sentimento humano. Por natureza, como sabemos, o ser humano tem tendência para precisar de acreditar no que desconhece para criar um sentido para o seu mundo. Agora, em que é que escolhemos acreditar, é uma interrogação válida, mas posterior (a meio caminho entre o ponto de partida e o de chegada, provavelmente).
«(...) à medida que essa recondução ao real perde sentido que se começa a acreditar em algo para além do real.» Faz sentido, passo a redundância, perguntar então quando é que essa recondução perde sentido. No teu texto fazes esta afirmação com convicção mas não a sustentas. Em vez disso, integras na tua argumentação uma justificação que me parece deslocada: «até porque quando se é perseguido por um monstro, se deve questionar imediatamente o real.» É bom não esquecer que o conceito de monstro me parece muito vago (sobretudo para a primeira imagem que nos é mostrada) para questionarmos o que quer que seja (em última análise, é uma fraca referência para nos colocar de imediato no lado da fé que Shyamalan tanto pretende). De facto, pelo mundo fora não faltam situações de crenças provocadas por aparições e imagens que só as pessoas podem explicar (muitas delas, de facto, são pouco interessantes e, nesse sentido, não dariam uma grande história para um filme). Repara, não coloco nada contra a mitologia em si, apenas à forma como é tão pouco trabalhada a sua integração na realidade do espectador. Tudo, em última análise, depende de um contexto, mas esse contexto tem de ser construído! Nenhum filme se pode arrogar de ter o seu próprio contexto apenas porque habita num determinado género de ficção.
Remeto-te, por breves instantes, para uma conversa que tivemos em privado no msn, onde discutíamos este filme por comparação com o «ET». Apesar de ambos partilharmos da conclusão que são experiências absolutamente distintas, é preciso perceber que o Spielberg tem uma abordagem radicalmente oposta à de Shyamalan. Repara, para Spielberg o lugar de origem do ET não interessa; interessa sim, o lugar afectivo que ele veio preencher. A determinada altura, as próprias crianças debatem o seu lugar de origem (a sua casa que, como viríamos a aprender com o filme, tem pouco de geográfico ou mitológico), sendo que a personagem da pequenina Drew Barrymore até pondera ele ser um animal qualquer. A mitologia de facto era pouco relevante, o que interessava era assistirmos ao preenchimento e mudança real e visível das pessoas tocadas por aquele ser. Em «Lady in the Water» não me parece existir essa preocupação pelas personagens. Parece-me que as personagens existem numa espécie de espectáculo de marionetas, com uma presença meramente simbólica e serviçal em função de uma denúncia moral que Shyamalan pretende impor. O argumento que apresentas do filme escolher não mostrar o processo de convencimento das personagens é, para mim, uma demérito enorme da construção narrativa do filme e do seu imaginário. É que essas imagens que faltam, são precisamente as que mais interessavam: são as reacções humanas e afectivas das pessoas (que, pessoalmente, me interessam mais do que saber o que é que eles conseguem ler nas palavras cruzadas de um jornal ou numa caixa de cereais).
Para terminar, dizes que cometi uma incongruência ao referir a honestidade do filme, ao mesmo tempo que implico que Shyamalan não terá acreditado nas suas personagens e na sua história. Parece-me desconcertante teres concluído esse pensamento, depois de teres caracterizado o meu texto como claro e inteligente. Claramente, inteligência é coisa que nunca poderia habitar num texto com incoerências desse género. Esperando então continuar a merecer a tua estima intelectual, deixa-me clarificar a situação. Logicamente que Shyamalan acredita de forma convicta no imaginário que está a contar. Mas as palavras formam-se também de conotações e denotações e eu acho que, no limite, ele não acreditou nas capacidades humanas das suas personagens. Acredita, sem dúvida, no seu papel e na sua função para a história, mas sem a crença humana que lhe reconhecíamos de outros filmes. Isso faz dele menos honesto? Penso que não. Menos criativo e artístico talvez... Eu acredito que tu adores o filme. Mas eu não acredito no filme. Parece contraditório? Talvez, estamos cá para lidar com as contrariedades da democracia.
Abraço
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