Acreditar em Quê Porquê
Caro Tiago,
Espero que não tenhas ficado incomodado pelo facto de, no meu texto anterior, me ter referido a ti na terceira pessoa. Sem prejuízo de outros discursos dignos (para mim a dignidade está na correcção), em que comunicamos como se estivéssemos na mesma sala, deixa-me esclarecer-te, como ponto prévio, que me referi a ti na terceira pessoa porque pretendi, “sem prejuízo de um debate mais aprofundado” posterior, estabelecer uma primeira abordagem, numa lógica de explanação de diferenças e não tanto de debate directo. Uma vez iniciado o debate, ainda que mediato, falemos então como se estivéssemos frente a frente.
O teu último texto sobre «Lady in the Water» esclarece algumas questões, mas suscita-me outras tantas. Não querendo alongar-me em demasia, refiro-me, então, a alguns pontos do teu texto.
1 – O “porquê” é um ponto de partida – e eu começo por reconhecer isso: “é um ponto de partida interessante” –, que tem naturalmente a ver com a formulação de hipóteses. Ao contrário do que dizes, não nego a lógica inerente de “princípio-fim”. Bem pelo contrário. O que disse no meu texto é que esse ponto de partida me parece o reflexo de um estado de crença que pouco tem a ver com considerações abstractas sobre a obra. Em todo o caso, tratava-se de uma mera constatação minha, que não encerrava em si qualquer crítica (lógica ou metodológica).
2 – Concordo, de facto, contigo quando referes “que a única forma de sermos honestos com a nossa verdade e com as nossas emoções (seja no cinema, ou em qualquer situação) é pensarmos sempre sobre elas”. Subscrevo, também, a opinião, derivada da anterior, de que é importante racionalizar as nossas emoções, até porque a filosofia segundo a qual as emoções não podem ser racionalizadas sempre me pareceu uma maneira preguiçosa de lidar com os dados que percepcionamos. Eu também racionalizei as minhas emoções. E concluí, diversamente de ti, que esta obra me diz muito.
3 – Ideia com a qual já não concordo é a de que Shyamalan imprimiu uma vontade quase dogmática em colocar o espectador a acreditar na sua fábula. É evidente que o realizador pretende que a sua fábula nos diga algo, mas creio que essa intenção assenta no máximo dos cepticismos (a personagem que Shyamalan interpreta parece-me, nesse sentido, reveladora). E ao contrário do que dizes, parece-me que o papel do espectador não é somente acreditar. Na verdade, o acreditar é apenas um instrumento para reinterpretar ou reponderar o real e nunca um fim em si mesmo. Não me parece, por outro lado, que este filme seja um monólogo; ao contrário, julgo que Shyamalan pretende estabelecer aqui uma dialéctica com o espectador, dando-lhe dados para que este questione o seu papel no mundo (afinal, não é este o paradigma que tem percorrido toda a obra do realizador?). É, nesse sentido, um filme que questiona, com humildade, a capacidade transformadora da Arte, tentando libertar, precisamente, todos os dogmas que perturbam esta potencialidade.
4 – Sustentas depois que a tua questão (acreditar porquê?) antecede a minha (acreditar em quê?). Salvo o devido respeito, discordo. Pelo menos nos termos em que colocas a questão. Tal como defendi no meu texto, é necessário possuir-se previamente uma noção, ainda que inconsciente, sobre o objecto duma crença. É evidente que considerações abstractas de cariz filosófico, moral ou religioso podem ser colocadas previamente, mas mesmo estas acabam por ter origem em algo de empírico. Dito de outro modo: pode colocar-se, em abstracto, a questão: porque razão tem o Homem fé? Porque acredita em algo que não conhece? São questões válidas (ainda que, como se vê, derivem empiricamente duma percepção do real, sendo por isso posteriores à assimilação dalgum objecto de crença). Mas se nos colocamos num plano de análise concreta de uma obra, e se nos questionamos se devemos acreditar em algo que dela emana, então só faz sentido, do ponto de vista lógico, perguntar pelo “porquê” se possuirmos uma noção do “o quê”. Devemos, por isso, perguntar, não só do ponto de vista dialéctico, mas também do ponto de vista dos mecanismos abstractos do pensamento, o seguinte: Acreditas? Em quê? Porquê? Por esta ordem. Como responder se acredito se não sei a que objecto se refere a crença?
5 – A recondução ao real perde sentido, na minha opinião, precisamente quando os códigos do real não conseguem acolher os dados que a ele se pretende reconduzir. Certo que a noção de monstro é demasiado ampla, mas dentro dela cabe certamente a ideia apriorística de “ser irreal”. A personagem de Paul Giamatti tenta, ainda, reconduzir o monstro ao real, mas à medida que outros dados, também “irreais”, o remetem para outro universo, a sua ela vai perdendo a sua fé no real. É um processo complexo, que Shyamalan nos apresenta subtilmente. Por vezes omite esse processo, como digo, mas isso é uma opção de foco artístico, não de negligência narrativa. Aliás, Shyamalan já analisou a fundo essa questão noutros filmes, pretendendo agora, legitimamente, atentar mais concretamente noutras vertentes do mesmo problema.
6 – Finalmente, a questão da incongruência. Mantenho que o teu texto é claro e inteligente. E mantenho, obviamente, intacta a enorme consideração intelectual que tenho por ti. Nunca foi isso que esteve em causa, como bem sabes. O que pretendi acentuar foi a fragilidade da tua argumentação neste ponto, o que não implica que o texto, na sua globalidade, deixe de ser inteligente e claro. Acentuei esta questão sobretudo porque me pareceu algo radical a tua afirmação de que o filme falha rotundamente o seu compromisso com a verdade. Isto dito assim, desta forma tão peremptória, pareceu-me prejudicar um pouco a ideia de que a obra era honesta. Porque, de facto, quando não se acredita nas capacidades do Homem e ao mesmo tempo se conta uma história em que o que está em causa é, precisamente, o próprio papel do Homem, é a honestidade que acaba também por ficar comprometida. Admito que seja um ponto em que as limitações do diálogo indirecto se acentuam, e que, no fundo, estejamos os dois a dizer a mesma coisa com formulações diversas…
7 – Não me parece contraditório que eu acredite na obra e tu não. Nem que a democracia tenha, sob este ponto de vista, qualquer contrariedade. Temos opiniões bem diferentes sobre este filme, mas nenhum de nós pretende converter o outro. Encontramo-nos apenas para trocar ideias e acentuar a subjectividade da Arte, não para encontrar no outro a confirmação das nossas verdades. Mas na democracia moram também opiniões contrárias. Como as de Harry Farber. Ou será que ele também não existe?
Um abraço
Espero que não tenhas ficado incomodado pelo facto de, no meu texto anterior, me ter referido a ti na terceira pessoa. Sem prejuízo de outros discursos dignos (para mim a dignidade está na correcção), em que comunicamos como se estivéssemos na mesma sala, deixa-me esclarecer-te, como ponto prévio, que me referi a ti na terceira pessoa porque pretendi, “sem prejuízo de um debate mais aprofundado” posterior, estabelecer uma primeira abordagem, numa lógica de explanação de diferenças e não tanto de debate directo. Uma vez iniciado o debate, ainda que mediato, falemos então como se estivéssemos frente a frente.
O teu último texto sobre «Lady in the Water» esclarece algumas questões, mas suscita-me outras tantas. Não querendo alongar-me em demasia, refiro-me, então, a alguns pontos do teu texto.
1 – O “porquê” é um ponto de partida – e eu começo por reconhecer isso: “é um ponto de partida interessante” –, que tem naturalmente a ver com a formulação de hipóteses. Ao contrário do que dizes, não nego a lógica inerente de “princípio-fim”. Bem pelo contrário. O que disse no meu texto é que esse ponto de partida me parece o reflexo de um estado de crença que pouco tem a ver com considerações abstractas sobre a obra. Em todo o caso, tratava-se de uma mera constatação minha, que não encerrava em si qualquer crítica (lógica ou metodológica).
2 – Concordo, de facto, contigo quando referes “que a única forma de sermos honestos com a nossa verdade e com as nossas emoções (seja no cinema, ou em qualquer situação) é pensarmos sempre sobre elas”. Subscrevo, também, a opinião, derivada da anterior, de que é importante racionalizar as nossas emoções, até porque a filosofia segundo a qual as emoções não podem ser racionalizadas sempre me pareceu uma maneira preguiçosa de lidar com os dados que percepcionamos. Eu também racionalizei as minhas emoções. E concluí, diversamente de ti, que esta obra me diz muito.
3 – Ideia com a qual já não concordo é a de que Shyamalan imprimiu uma vontade quase dogmática em colocar o espectador a acreditar na sua fábula. É evidente que o realizador pretende que a sua fábula nos diga algo, mas creio que essa intenção assenta no máximo dos cepticismos (a personagem que Shyamalan interpreta parece-me, nesse sentido, reveladora). E ao contrário do que dizes, parece-me que o papel do espectador não é somente acreditar. Na verdade, o acreditar é apenas um instrumento para reinterpretar ou reponderar o real e nunca um fim em si mesmo. Não me parece, por outro lado, que este filme seja um monólogo; ao contrário, julgo que Shyamalan pretende estabelecer aqui uma dialéctica com o espectador, dando-lhe dados para que este questione o seu papel no mundo (afinal, não é este o paradigma que tem percorrido toda a obra do realizador?). É, nesse sentido, um filme que questiona, com humildade, a capacidade transformadora da Arte, tentando libertar, precisamente, todos os dogmas que perturbam esta potencialidade.
4 – Sustentas depois que a tua questão (acreditar porquê?) antecede a minha (acreditar em quê?). Salvo o devido respeito, discordo. Pelo menos nos termos em que colocas a questão. Tal como defendi no meu texto, é necessário possuir-se previamente uma noção, ainda que inconsciente, sobre o objecto duma crença. É evidente que considerações abstractas de cariz filosófico, moral ou religioso podem ser colocadas previamente, mas mesmo estas acabam por ter origem em algo de empírico. Dito de outro modo: pode colocar-se, em abstracto, a questão: porque razão tem o Homem fé? Porque acredita em algo que não conhece? São questões válidas (ainda que, como se vê, derivem empiricamente duma percepção do real, sendo por isso posteriores à assimilação dalgum objecto de crença). Mas se nos colocamos num plano de análise concreta de uma obra, e se nos questionamos se devemos acreditar em algo que dela emana, então só faz sentido, do ponto de vista lógico, perguntar pelo “porquê” se possuirmos uma noção do “o quê”. Devemos, por isso, perguntar, não só do ponto de vista dialéctico, mas também do ponto de vista dos mecanismos abstractos do pensamento, o seguinte: Acreditas? Em quê? Porquê? Por esta ordem. Como responder se acredito se não sei a que objecto se refere a crença?
5 – A recondução ao real perde sentido, na minha opinião, precisamente quando os códigos do real não conseguem acolher os dados que a ele se pretende reconduzir. Certo que a noção de monstro é demasiado ampla, mas dentro dela cabe certamente a ideia apriorística de “ser irreal”. A personagem de Paul Giamatti tenta, ainda, reconduzir o monstro ao real, mas à medida que outros dados, também “irreais”, o remetem para outro universo, a sua ela vai perdendo a sua fé no real. É um processo complexo, que Shyamalan nos apresenta subtilmente. Por vezes omite esse processo, como digo, mas isso é uma opção de foco artístico, não de negligência narrativa. Aliás, Shyamalan já analisou a fundo essa questão noutros filmes, pretendendo agora, legitimamente, atentar mais concretamente noutras vertentes do mesmo problema.
6 – Finalmente, a questão da incongruência. Mantenho que o teu texto é claro e inteligente. E mantenho, obviamente, intacta a enorme consideração intelectual que tenho por ti. Nunca foi isso que esteve em causa, como bem sabes. O que pretendi acentuar foi a fragilidade da tua argumentação neste ponto, o que não implica que o texto, na sua globalidade, deixe de ser inteligente e claro. Acentuei esta questão sobretudo porque me pareceu algo radical a tua afirmação de que o filme falha rotundamente o seu compromisso com a verdade. Isto dito assim, desta forma tão peremptória, pareceu-me prejudicar um pouco a ideia de que a obra era honesta. Porque, de facto, quando não se acredita nas capacidades do Homem e ao mesmo tempo se conta uma história em que o que está em causa é, precisamente, o próprio papel do Homem, é a honestidade que acaba também por ficar comprometida. Admito que seja um ponto em que as limitações do diálogo indirecto se acentuam, e que, no fundo, estejamos os dois a dizer a mesma coisa com formulações diversas…
7 – Não me parece contraditório que eu acredite na obra e tu não. Nem que a democracia tenha, sob este ponto de vista, qualquer contrariedade. Temos opiniões bem diferentes sobre este filme, mas nenhum de nós pretende converter o outro. Encontramo-nos apenas para trocar ideias e acentuar a subjectividade da Arte, não para encontrar no outro a confirmação das nossas verdades. Mas na democracia moram também opiniões contrárias. Como as de Harry Farber. Ou será que ele também não existe?
Um abraço
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