18.10.06

Muito Transe, Pouco Cinema


«Transe», o novo filme de Teresa Villaverde, é um caso flagrante de esbanjamento de recursos e de ideias e um penoso caminho cinematográfico de autodestruição. Na verdade, não é apenas Sónia, a personagem principal, que vai perdendo a sua identidade e dignidade: o próprio filme parece querer acompanhá-la nessa espiral de destruição e acaba por tornar-se num objecto amorfo, quebrado, vago e impenetrável.

Acompanhar este filme torna-se, assim, uma tarefa inglória e desapontante, agudizada não só pelas boas referências que dele tínhamos previamente, mas sobretudo pelas referências que ele dá de si próprio na primeira parte da narrativa (meticulosa, poética, sensorial, rica em referências e em ideias de cinema).

De facto, se o filme começa com interessantes referências ao lendário realizador russo Tarkovsky, numa inteligente simbiose entre a austera realidade e a poesia da natureza em movimento, a verdade é que rapidamente as descarta em detrimento de um discurso miserabilista e deprimente, que confunde profundidade dramática com a sobre-exploração do rosto sacrificial da protagonista.

As opções estilísticas e narrativas da realizadora são bastante discutíveis e à medida que o filme avança mais se torna evidente o fracasso do dispositivo montado. Se, por um lado, estamos perante um filme com preocupações sociais (o drama do tráfico de mulheres numa Europa desumanizada e indistinta), por outro verificamos que o social rapidamente é trocado pelo pessoal e que o realismo se compromete com o calculismo do artificial.

Onde inicialmente existiam ideias e certeira gramática cinematográfica passam a existir planos longuíssimos e impertinentes, redundâncias de vária ordem, processos narrativos herméticos e descompensados, e, sobretudo, uma enorme aridez emocional e a profunda incapacidade de fazer crescer a narrativa em termos dramáticos. No final, francamente mal engendrado, ainda se tenta recuperar o pulsar cinematográfico, com uma óbvia citação de Bergman (de «Persona», pois claro), mas nessa altura já nada pode salvar um filme moribundo e despedaçado.

Excepção à mediocridade geral do filme é Ana Moreira, actriz promissora e de talento latente, que aqui merecia melhor material narrativo. O seu olhar penetrante, a terna composição do seu rosto, a meticulosa encenação dos seus gestos e a enorme força dramática que brilhantemente soube conter fazem dela um verdadeiro porto de abrigo para o espectador. Num ano francamente mediano em termos de interpretações femininas em papéis principais, a sua interpretação em «Transe» é já uma das melhores do ano. Proeza sua, não do filme!

2 comments:

MPB said...

Na verdade acho que existe bastante cinema em TRANSE.
Existe uma questão que me ocupa a mente, é a questão de muitas vezes se apontar para a "questão" do realismo ou hiper-realismo, do filme de Teresa Villaverde, mas na verdade o realismo existe por si só, e essa proesa só é evidente graças ao traço onírico que a realizadora lança ao longo de toda a sua coesa narrativa. Agora falta saber se esse onirismo é favorável ou não ao filme. É complexo.

E para além de Tarkovsky e Bergman, a imagem da Europa e da Rússia em particular, leva claramente a entrar nas convulsões de Sokurov, nem que seja pela identidade perdida, ou por encontrar.

cumps

João Ricardo Branco said...

Ne-To:

Obrigado pelo comentário.

Não creio que seja o onirismo (nem o lirismo) que prejudica o filme, muito pelo contrário. O que falhou, na minha opinião, foi a quebra cinematográfica existente entre a primeira parte da narrativa (sensivelmente, e inclusive, até à viagem que leva Sónia para longe da Rússia) e o resto.

Após a viagem, o filme perde alguns minutos numa toada realista intermédia que aborda os problemas da imigração, mas depois fecha-se de tal forma sobre si mesmo que o real e onírico surgem como ecos artificiais de uma linguagem cinematográfica e de um contexto social e narrativo quebrados e incompletos. O que sobra depois? Sucessão vaga e indiferente de planos em tom sacrificial e primário, que a mim pouco me interessaram.

Cumprimentos,