26.9.06

Recordar uma obra-prima...

A propósito da estreia do mais que esperado Lady in the Water, um texto-análise que resultou de um estado de emoção imediatamente decorrente do visionamento da obra-prima máxima de M. Night Shyamalan, The Village, à data da sua estreia. Recordam-se momentos tão elevados de Cinema na ânsia de que possam ser, já dentro de dias, superados pelo génio imparável do autor maior do novo cinema americano.


A Cor do Amor

O nome de M. Night Shyamalan tem-se firmado como um dos mais fascinantes no panorama do cinema fantástico actual. Incorporando a herança de Hitchcock e Spielberg num novo Cinema que é só seu, o cineasta de Filadélfia tem revelado um inesgotável talento e uma capacidade de aliar o entretenimento puro à exploração das maiores verdades existenciais: a (i)mortalidade em The Sixth Sense, a coragem e superação pessoal em Unbreakable, a fé em Signs. E tem-no feito mascarando a sua obsessão por sondar a alma humana em argumentos que, seguindo os códigos do filme de suspense, fantástico e terror, os ultrapassam quando é feita uma leitura aprofundada das suas coordenadas.

Contudo, e apesar da progressão qualitativa que se tem vindo a registar na sua obra, nada prepara o espectador para a profundidade de um filme como The Village, o melhor filme a sair da imaginação do autor, formando com Signs um dos mais importantes e comoventes dípticos da história do Cinema recente no que respeita à análise do papel do Homem no Mundo, das suas relações, medos e mecanismos de sobrevivência.


Uma lápide num dos planos iniciais do filme indica o ano de 1897, numa comunidade rural, isolada por uma densa floresta que a separa da cidade. A comunidade, assente em valores tradicionais, é liderada por um grupo de anciãos fundadores, que conseguiu negociar tréguas com as criaturas fantásticas que vivem na floresta, seres míticos que nunca ninguém viu mas que todos temem, protegendo-se com estandartes e roupas amarelas e renegando a tudo o que ostente a cor vermelha.


Um rapaz da vila, Lucious Hunt (Joaquin Phoenix, cada vez mais denso) apresenta a proposta de se aventurar pelos bosques, em busca de medicamentos e provisões que assegurem uma maior taxa de sobrevivência da população, e este facto vai desencadear acontecimentos que irão pôr em causa os princípios pelos quais aquela sociedade se rege. Para isso contribui também o amor de Lucious por Ivy Walker (Bryce Dallas Howard, que numa primeira interpretação de tirar o fôlego quase mostra mais talento que o pai Ron em toda a sua carreira...), a filha cega do ancião-mor (William Hurt) e o fascínio que esta exerce sobre Noah Percy (bela e perturbante criação de Adrien Brody), o louco da vila. Revelar mais sobre a história seria negar o prazer de fruir do seu genial desenvolvimento.


Shyamalan, que com Signs conseguiu utilizar uma invasão extra-terrestre como pretexto para introduzir a mais tocante e vibrante reflexão sobre a Fé de que há memória, serve-se aqui de um conto de terror gótico, que poderia ter saído do imaginário de Edgar Allen Poe ou de uma releitura distorcida das fábulas clássicas dos Grimm, como ponto de partida para dissertar sobre o(s) estado(s) das sociedades contemporâneas, numa inteligentíssima alegoria com os acontecimentos que marcaram a História Mundial recente.

Mais do que um filme que mete medo - e, seja dito, os ataques nocturnos das criaturas e o “confronto” final estão imersos num clima de cortar à faca - The Village é um estudo sobre o próprio medo. De facto, depois de mostrar o efeito que ele produz sobre os indivíduos, Shyamalan dedica-se à desmontagem dos seus mecanismos internos, até chegar à própria criação do medo e às razões que a (in)justificam, criando assim uma poderosa e inesperada metáfora sobre a América actual, os seus fantasmas e obsessões. De facto, os fundadores da comunidade são uma imagem dos poderosos que, ainda que munidos de boas intenções como qualquer governante à partida o faz (e elas aqui são nobilíssimas), utilizam o medo como arma de que se servem para iludir e subjugar os outros à sua visão. Na ânsia de criar um microcosmos desassombrado de corrupção e violência, a ameaça pelo medo acaba por se sobrepor e levar a um mundo ainda mais corrupto e violento no seu seio, que o corrói por dentro e o deteriora, e em que a loucura, inocente ou forjada, da personagem de Brody acaba por ser a forma aparente de lidar com o peso da verdade.


Mas nem tudo é negro nesta abordagem: o cineasta inunda o seu filme com a luz do Amor, como último reduto para a sobrevivência emocional e social, mostrando que há uma réstia de esperança para que o Mundo progrida num clima de subjugação. Quem acaba por sair da comunidade e conhecer a “tenebrosa” cidade é, ironicamente ou não, Ivy, que apesar se ser cega por natureza está também cega pelo amor que sente por Lucious, o que lhe “devolve” a visão e, no intuito de o resgatar da morte, a faz empreender uma viagem ao interior do seu próprio medo, mesmo sabendo que as fundações desse medo já não tinham razão de ser.

É ela que, depois de ter estado no (mais) corrompido Mundo Exterior e, secretamente, ter visto sem olhar a sua verdadeira natureza, volta para salvar a sua razão de viver e perpetuar o Mundo Interior da vila, agora sob o signo de uma nova religião, a do Amor e da Esperança. Se Lucious era a Coragem, Ivy é o Amor, e este nem o medo nem a superstição conseguem submergir: aos seus olhos, a cor de Lucious, sem nunca nos ser revelada, não seria certamente amarela ou vermelha, mas sim uma mistura de todas as cores, pois o Amor tudo absorve, tudo consome.


Está então subjacente nesta película uma forte mensagem, que faz com que seja a primeira fita assumidamente política de Shyamalan. É algo óbvio que a situação política americana fez parte da agenda do criador nesta sua nova obra: os sinais são claros, desde os códigos de cores semelhantes aos utilizados nos estados de alerta pós-11 de Setembro até ao uso da intimidação como forma de apoio a uma ideia de governação que toda a gente aceita sem saber ao certo qual é. Sem a pretensão de colocar a dimensão política em primeiro plano e salvaguardando as devidas distâncias entre dois objectos tão distintos, não deixa pois de ser chocante que alguma crítica norte-americana louve um objecto tão medíocre e manipulador como Fahrenheit 9/11 para logo de seguida não reconhecer nesta obra uma muito mais inteligente e subversiva leitura de alguns feitos da administração de George Walker (mais um sinal...) Bush.

Para o sucesso do conceito, há que louvar os aspectos técnicos do filme, com mais uma realização de planos perfeitos e plenos de pormenor e inebriante beleza, uma extraordinária banda-sonora de James Newton Howard, uma fotografia de contrastes de Roger Deakins e ainda mais um assombroso trabalho sobre o som, que amplifica as emoções das personagens e as do espectador. Os actores são absolutamente extraordinários, conseguindo Shyamalan extrair do seu elenco de luxo poderosas interpretações, com tempo e espaço para se estenderem e se perpetuarem na memória. Se as criações de Brody, Phoenix e Hurt são fascinantes, a nota de destaque terá que ir para Bryce Dallas Howard, que nesta sua primeira interpretação como protagonista mostra que é por rostos como o seu, belo sem perder a verdade emocional e inocente sem ser virginal, que passa o futuro do Cinema.


Tal como Hitchcock, M. Night Shyamalan volta a surgir mais uma vez no seu filme, numa intrigante mas esclarecedora aparição em off, inteligentíssima concepção do estatuto que adquiriu. Ele é, de facto, o mais fascinante contador de histórias do Cinema contemporâneo, tendo conseguido com The Village entregar mais uma obra-prima de verdade e arte puras.

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