30.9.06

Snakes on a Plane


É quando se vê um filme como este que se deve pensar sobre o significado de qualquer sistema de classificações. É, claramente, um daqueles casos em que o mau (porque é propositado e levado ao limite do mau) se torna, de certa forma, bom, na medida em que diverte o espectador.

Destinado a tornar-se um filme série B de culto (isto se não se tinha tornado já antes de estrear),
Snakes on a Plane consegue manter o mesmo nível de divertimento despretensioso, e, como exige qualquer filme série B com as pretensões deste, os efeitos especiais são maus, há enquadramentos do ponto de vista das cobras do mais foleiro que pode haver, one-liners de baixo nível a cada minuto, e tudo muito mal filmado. De qualquer forma, parece-me que o filme falha no climax final, que quase não existe, mas era mais do que necessário se queria manter o nível de divertimento que tivera até aí.

28.9.06

Renascer


Uma breve nota, ainda a quente, para expressar a minha profundíssima admiração por «Lady in the Water». Pela sua radicalidade, pela sua ousadia, pela sua coragem, mas sobretudo pela sua capacidade transformadora.

Este filme de Shyamalan faz-me lembrar, aliás, uma Fénix, a belíssima ave mitológica que após a morte renascia das próprias cinzas. Porque se trata, de facto, de um verdadeiro milagre transformador: tudo parece aniquilado, mas tudo acaba por renascer. Numa perspectiva mais radical, é como se Shyamalan pretendesse que a sua arte morresse para poder começar tudo outra vez, de forma redobradamente límpida e pura.

Nesse sentido, «Lady in the Water» surge ao mesmo tempo como um filme de síntese e como um filme de transição. O realizador junta os elementos primordiais dos seus filmes anteriores e leva-os até àquele ponto-limite em que nada já parece fazer sentido. Mas antes da aniquilação total e definitiva, supera-se e renasce-se para um novo começo. Poucas vezes se assistiu a tamanha demonstração de fé na capacidade transformadora da Arte!

Onde ficou a história?

Uma pequena nota para constatar que se confirmam os piores receios em relação à última película de Shyamalan. Louvando a ousadia do esforço, há que constatar a crua realidade: Lady in the Water é um filme completamente falhado. Os actores são sólidos, a fotografia excelente, a banda sonora magnífica, os enquadramentos e movimentos de câmara irrepreensíveis. Mas, num filme que se entende como metáfora para a magia e a simplicidade do melhor storytelling e como crítica ao cinismo que corrói corações e a nossa própria humanidade acaba por faltar justamente o mais importante - uma história sólida e verdadeira ligação emocional ao seres que habitam esta película. O filme oscila entre o risível e o ridículo, com personagens completamente perdidos na forma esquemática como Shyamalan pretende forçar o seu ponto (e há que carregar no forçar, pois os cordelinhos que ele está a puxar são tão ostensivamente expostos que não andamos muito longe de chamar o espectador de estúpido), acabando engolido pela onda daquilo que pretendia criticar. No meio de uma história de encantar caída não se sabe muito bem de onde (a não ser no seu propósito serviçal à tese do filme), de múltiplas personagens cuja existência é nula para além do mero desígnio funcional, de momentos de estereotipação que tocam no incomodativo, sobra muito pouco para o espectador se agarrar além de uns quantos momentos de humor bem conseguidos.

Como quase todos os falhanços monumentais, este acaba por ser um objecto singular, que será provavelmente tratado por alguns como filme de culto e objecto incompreendido. A legião de fãs do realizador encarregar-se-à de enumerar os seus imensos méritos pelos anos fora. SIngularidade não é, contudo, sinónimo de qualidade e, aos restantes, resta esperar que Shyamalan aproveite este tremendo falhanço para fazer uma pausa para meditação e auto-avaliação, regressando ao que sabe fazer como poucos. Se assim for, terá valido a pena o percalço.

Man may have forgotten how to listen...

É uma pessoa, geralmente uma mulher, tão cheia de esperança, que é capaz de despertar a força vital nos seres vivos.

Esta frase é dita por Paul Giamatti em «Lady in the Water» para descrever uma personagem da história de embalar. Mas poderia muito bem servir para descrever o próprio filme, um objecto cinematográfico com uma mensagem de esperança tão sincera que é capaz de fazer mergulhar o espectador no seu mundo de fantasia e tocar-lhe profundamente. Mas nem por isso é de estranhar que o filme tenha sido tão mal recebido, e que só poucos o adorem incondicionalmente. É normal que não se trate de um filme que consiga encantar qualquer um, visto que se trata de um projecto incrivelmente pessoal; algo muito sentido pelo realizador, e essa genuinidade sente-se imagem a imagem. E, por ser tão pessoal, é natural que não seja aceite por todos da mesma forma. Ou, por outras palavras, é um filme feito menos com a cabeça e mais com o coração.

Shyamalan continua fiel a si próprio, com personagens meio mortas, meio vivas, quase desligadas do mundo real, consequência de fantasmas do passado que continuam a assombrar o presente, roubando-lhes não só a felicidade, mas a fé e a esperança. Porém, a esperança continua lá, escondida no fundo do coração do mais infeliz e desencantado dos seres humanos, reencontrando-a apenas quando “um anjo” lhe aparece, ensinando-o a procurar a sua fé e mostrando-lhe a razão de viver. Afinal, tudo se resume à difícil capacidade acreditar. Em quê? Em nós próprios e em toda a humanidade.

27.9.06

Pensar e existir



«BLADE RUNNER» - Original Cut

****SPOILERS****

Se não existisse um sentido existencial e trágico nas imagens, «Blade Runner» poderia valer-se apenas da sua estética retrofuturista, sucumbida por uma fotografia soturna que abre espaços ao mistério noir da história e à transcendência artística das suas imagens e do seu imaginário. Vale a pena parar para pensar sobre o peso da palavra imaginário: nela lemos conceitos como imaginação, fictício, utópico. Imaginário poderá ser uma colecção de imagens que sustentam um determinado universo de ficção. E, se alguma vez o cinema atingiu um zénite na gestão criativa das suas imagens, «Blade Runner» foi, seguramente, um desses marcos históricos.

O segredo para «Blade Runner» permanecer intemporal e futurista seja qual for a altura em que o visionemos, tem a ver precisamente com a singularidade do seu património visual, compondo um lugar e um tempo que não parecem pertencer a tempo e a lugar nenhuns. Por um lado, colecciona elementos clássicos da ficção futurista, desde os carros voadores, às grandes estruturas piramidais (algures entre o cinzento-metálico do futuro e a construção egípcia do passado) passando pela evolução da robótica ao ponto de ser possível criar um ser biomecânico, auto-suficiente para trabalhar como escravo nas colónias extraterrestres; mas, por outro lado, o filme mantém uma ligação afectiva e material com símbolos do nosso mundano: os mercados e as praças continuam a lembrar as famosas chinatown, as armas têm um efeito semelhante às tradicionais (evitando criar um imaginário futurista e convencional de armas de raios laser e afins), a própria estilização do filme remonta para os film noirs dos anos 40, património do nosso passado. Algures entre a tecnologia do futuro e a plasticidade do passado, «Blade Runner» encontra um lugar que é menos temporal e mais cinematográfico. Dito de outra forma: o filme acaba por não pertencer a nenhum tempo em concreto, assemelhando-se mais a um estado de sonho, a um sonambulismo permanente algures entre o real e o quimérico. A entrada de «Blade Runner» (o plano aéreo de Los Angeles) introduz-nos à sua cenografia negra e operática, como se o mundo estivesse à beira de um fim ainda incerto (no final, sabemos, Roy morre com as suas lágrimas à chuva, e o filme renasce para um novo dia, acompanhando a viagem de Deckard e Rachel por paisagens montanhosas, perseguindo uma jornada também ela incerta... vemos o sol pela primeira vez).

O humano e a máquina

Os Replicantes de «Blade Runner» são robôs com tecido orgânico e aparência humana, e são utilizados no espaço extraterrestre para trabalharem como escravos nas colónias. O planeta Terra está transformado num unificado terceiro mundo, onde habitam apenas os que não têm condições financeiras e médicas para viajarem até uma das colónias. Algures numa dessas colónias, um grupo de Replicantes revolta-se e foge para a Terra, na esperança de resolver um problema que pensávamos ser exclusivamente humano: o medo consciente da morte. Neles (nos Replicantes) revemos os nossos receios e utopias condensados nos seus corpos, os seus desejos de vida, de memórias... de existirem.

É absolutamente fundamental percebermos que os implantes de memórias lhes davam uma característica humana incontornável: a capacidade de compormos as nossas próprias emoções em função de uma educação existencial adquirida com os anos e com as experiências. E essa é, no limite, a questão nuclear de «Blade Runner»: ganharmos consciência dos feitos fascinantes do nosso passado e compormos constantemente sonhos para o futuro. E é inevitável que esses sonhos se mantenham, até certo limite, inconcretizáveis. Faz parte da nossa condição, termos sempre um objectivo a atingir, um sonho que, na sua mais bela utopia, é impossível de ser tocado. O nosso humanismo completa-se nessa impossibilidade.

E Roy percebe a beleza trágica dessa impossibilidade no final, quando resume a Deckard os grandes momentos que viveu na sua curta vida. Ele viu coisas que mais ninguém acreditaria, visões assombrosas e sublimes, únicas na sua existência. E tudo isso se perderá na memória do tempo, não apenas porque ele se prepara para morrer, mas, acima de tudo, porque ganhou consciência humana do valor imenso daquilo que viu (e que, agora, se prepara para perder). Talvez dizendo-o a alguém, esses momentos perdurem de alguma forma. Talvez fosse isso que Roy queria no final: alguém a quem transmitir as suas memórias. É nessa carência que nos revemos, na necessidade de perdurarmos a nossa existência para além da nossa vida, como se fossem, de facto, conceitos distintos. E a arte não é isso? A imortalização de uma imagem, de uma ideia, de um pensamento. Com a morte de Roy vem a catarse de Deckard, a possibilidade de continuar a sua história de amor com uma Replicante cuja vida foi poupada. Rachel era especial, não tinha data especificada para terminar a sua existência e Deckard sabia disso. Ambos partem numa nova jornada romântica com toda a insegurança tão característica do humano: eles não sabiam quanto tempo ainda tinham juntos, mas de facto, alguém sabe?

26.9.06

Recordar uma obra-prima...

A propósito da estreia do mais que esperado Lady in the Water, um texto-análise que resultou de um estado de emoção imediatamente decorrente do visionamento da obra-prima máxima de M. Night Shyamalan, The Village, à data da sua estreia. Recordam-se momentos tão elevados de Cinema na ânsia de que possam ser, já dentro de dias, superados pelo génio imparável do autor maior do novo cinema americano.


A Cor do Amor

O nome de M. Night Shyamalan tem-se firmado como um dos mais fascinantes no panorama do cinema fantástico actual. Incorporando a herança de Hitchcock e Spielberg num novo Cinema que é só seu, o cineasta de Filadélfia tem revelado um inesgotável talento e uma capacidade de aliar o entretenimento puro à exploração das maiores verdades existenciais: a (i)mortalidade em The Sixth Sense, a coragem e superação pessoal em Unbreakable, a fé em Signs. E tem-no feito mascarando a sua obsessão por sondar a alma humana em argumentos que, seguindo os códigos do filme de suspense, fantástico e terror, os ultrapassam quando é feita uma leitura aprofundada das suas coordenadas.

Contudo, e apesar da progressão qualitativa que se tem vindo a registar na sua obra, nada prepara o espectador para a profundidade de um filme como The Village, o melhor filme a sair da imaginação do autor, formando com Signs um dos mais importantes e comoventes dípticos da história do Cinema recente no que respeita à análise do papel do Homem no Mundo, das suas relações, medos e mecanismos de sobrevivência.


Uma lápide num dos planos iniciais do filme indica o ano de 1897, numa comunidade rural, isolada por uma densa floresta que a separa da cidade. A comunidade, assente em valores tradicionais, é liderada por um grupo de anciãos fundadores, que conseguiu negociar tréguas com as criaturas fantásticas que vivem na floresta, seres míticos que nunca ninguém viu mas que todos temem, protegendo-se com estandartes e roupas amarelas e renegando a tudo o que ostente a cor vermelha.


Um rapaz da vila, Lucious Hunt (Joaquin Phoenix, cada vez mais denso) apresenta a proposta de se aventurar pelos bosques, em busca de medicamentos e provisões que assegurem uma maior taxa de sobrevivência da população, e este facto vai desencadear acontecimentos que irão pôr em causa os princípios pelos quais aquela sociedade se rege. Para isso contribui também o amor de Lucious por Ivy Walker (Bryce Dallas Howard, que numa primeira interpretação de tirar o fôlego quase mostra mais talento que o pai Ron em toda a sua carreira...), a filha cega do ancião-mor (William Hurt) e o fascínio que esta exerce sobre Noah Percy (bela e perturbante criação de Adrien Brody), o louco da vila. Revelar mais sobre a história seria negar o prazer de fruir do seu genial desenvolvimento.


Shyamalan, que com Signs conseguiu utilizar uma invasão extra-terrestre como pretexto para introduzir a mais tocante e vibrante reflexão sobre a Fé de que há memória, serve-se aqui de um conto de terror gótico, que poderia ter saído do imaginário de Edgar Allen Poe ou de uma releitura distorcida das fábulas clássicas dos Grimm, como ponto de partida para dissertar sobre o(s) estado(s) das sociedades contemporâneas, numa inteligentíssima alegoria com os acontecimentos que marcaram a História Mundial recente.

Mais do que um filme que mete medo - e, seja dito, os ataques nocturnos das criaturas e o “confronto” final estão imersos num clima de cortar à faca - The Village é um estudo sobre o próprio medo. De facto, depois de mostrar o efeito que ele produz sobre os indivíduos, Shyamalan dedica-se à desmontagem dos seus mecanismos internos, até chegar à própria criação do medo e às razões que a (in)justificam, criando assim uma poderosa e inesperada metáfora sobre a América actual, os seus fantasmas e obsessões. De facto, os fundadores da comunidade são uma imagem dos poderosos que, ainda que munidos de boas intenções como qualquer governante à partida o faz (e elas aqui são nobilíssimas), utilizam o medo como arma de que se servem para iludir e subjugar os outros à sua visão. Na ânsia de criar um microcosmos desassombrado de corrupção e violência, a ameaça pelo medo acaba por se sobrepor e levar a um mundo ainda mais corrupto e violento no seu seio, que o corrói por dentro e o deteriora, e em que a loucura, inocente ou forjada, da personagem de Brody acaba por ser a forma aparente de lidar com o peso da verdade.


Mas nem tudo é negro nesta abordagem: o cineasta inunda o seu filme com a luz do Amor, como último reduto para a sobrevivência emocional e social, mostrando que há uma réstia de esperança para que o Mundo progrida num clima de subjugação. Quem acaba por sair da comunidade e conhecer a “tenebrosa” cidade é, ironicamente ou não, Ivy, que apesar se ser cega por natureza está também cega pelo amor que sente por Lucious, o que lhe “devolve” a visão e, no intuito de o resgatar da morte, a faz empreender uma viagem ao interior do seu próprio medo, mesmo sabendo que as fundações desse medo já não tinham razão de ser.

É ela que, depois de ter estado no (mais) corrompido Mundo Exterior e, secretamente, ter visto sem olhar a sua verdadeira natureza, volta para salvar a sua razão de viver e perpetuar o Mundo Interior da vila, agora sob o signo de uma nova religião, a do Amor e da Esperança. Se Lucious era a Coragem, Ivy é o Amor, e este nem o medo nem a superstição conseguem submergir: aos seus olhos, a cor de Lucious, sem nunca nos ser revelada, não seria certamente amarela ou vermelha, mas sim uma mistura de todas as cores, pois o Amor tudo absorve, tudo consome.


Está então subjacente nesta película uma forte mensagem, que faz com que seja a primeira fita assumidamente política de Shyamalan. É algo óbvio que a situação política americana fez parte da agenda do criador nesta sua nova obra: os sinais são claros, desde os códigos de cores semelhantes aos utilizados nos estados de alerta pós-11 de Setembro até ao uso da intimidação como forma de apoio a uma ideia de governação que toda a gente aceita sem saber ao certo qual é. Sem a pretensão de colocar a dimensão política em primeiro plano e salvaguardando as devidas distâncias entre dois objectos tão distintos, não deixa pois de ser chocante que alguma crítica norte-americana louve um objecto tão medíocre e manipulador como Fahrenheit 9/11 para logo de seguida não reconhecer nesta obra uma muito mais inteligente e subversiva leitura de alguns feitos da administração de George Walker (mais um sinal...) Bush.

Para o sucesso do conceito, há que louvar os aspectos técnicos do filme, com mais uma realização de planos perfeitos e plenos de pormenor e inebriante beleza, uma extraordinária banda-sonora de James Newton Howard, uma fotografia de contrastes de Roger Deakins e ainda mais um assombroso trabalho sobre o som, que amplifica as emoções das personagens e as do espectador. Os actores são absolutamente extraordinários, conseguindo Shyamalan extrair do seu elenco de luxo poderosas interpretações, com tempo e espaço para se estenderem e se perpetuarem na memória. Se as criações de Brody, Phoenix e Hurt são fascinantes, a nota de destaque terá que ir para Bryce Dallas Howard, que nesta sua primeira interpretação como protagonista mostra que é por rostos como o seu, belo sem perder a verdade emocional e inocente sem ser virginal, que passa o futuro do Cinema.


Tal como Hitchcock, M. Night Shyamalan volta a surgir mais uma vez no seu filme, numa intrigante mas esclarecedora aparição em off, inteligentíssima concepção do estatuto que adquiriu. Ele é, de facto, o mais fascinante contador de histórias do Cinema contemporâneo, tendo conseguido com The Village entregar mais uma obra-prima de verdade e arte puras.

25.9.06

O Breve Encontro com a Eternidade


Poderá um local aparentemente tão frio como uma estação de comboios ser o palco para uma grande história de amor? A resposta pode ser encontrada em «Brief Encounter», um dos primeiros filmes do mestre David Lean – provavelmente o maior dos realizadores britânicos – e uma das grandes obras-primas da década de 1940.

Filme minimalista e de um só fôlego, «Brief Encounter» conta em primorosos flashbacks, auxiliados por uma das melhores voz-off de sempre (um verdadeiro monólogo interior), a história de Laura Jesson (inesquecível Celia Johnson) e de Alec Harvey (grandioso Trevor Howard), ambos casados e com filhos, que se conhecem fortuitamente numa estação de comboios e que se apaixonam perdidamente. As tardes de Quinta-Feira – único dia em que se podem encontrar – transformam-se em rituais de amor genuíno e descomprometido, terno e sussurrado, grandioso na sua simplicidade. Amor genuíno, mas proibido. Amor grandioso, mas tragicamente condenado.

Antes da magnitude épica de «Lawrence of Arabia» e de «Doctor Zhivago», David Lean ofereceu-nos este inesquecível filme, cinematograficamente perfeito, e filmado num majestoso preto e branco feito de luz e de sombras contemplativas. «Brief Encounter» é cinema eterno e intocável, e um dos mais belos filmes de sempre!

24.9.06

Unbreakable

22.9.06

Bringing out the dead

Um apontamento sobre World Trade Center

O regresso de Oliver Stone à obsessão maior da sua vida artística – a América e as suas convulsões internas, não poderia mesmo ter surgido de outra forma que não fosse um olhar para o evento que redefiniu todo o panorama da geopolítica mundial e da forma como a América se vê a si própria e ao mundo.

World Trade Center pode ter surpreendido alguns, já que Stone optou por dar a câmara aos heróis do dia e às suas famílias, homens normais em circunstâncias extraordinárias, mas não deixa de ter impressa a grande ambiguidade moral que permeava “Platoon”, “JFK” ou “Nixon”. Stone nunca se encolheu perante a hipótese de tomar posição, mas também nunca caiu no discurso propagandista ou dogmático. Se existe no seu cinema uma noção de certo e errado, do Bem e do Mal, existe também a complexidade de um mundo feito de homens, de imperfeições e situações que transcendem o simples maniqueísmo. World Trade Center é um filme com moral, mas não é a moral fácil que domina tantas vezes as análises e que se procura impôr também a propósito deste filme.


Em World Trade Center, não menosprezando a heróica e pungente resistência de John McLoughlin e Will Jimeno debaixo dos escombros – filmada com classe num decor prodigioso – e a impossível espera das suas esposas (colossais desempenhos oscilando entre a contenção e a explosão de Maria Bello e Maggie Gyllenhaal), convém não esquecer o personagem de Dave Karnes. Nele, em escassos três ou quatro diálogos, é introduzida toda uma dimensão de fundo característica de Stone que, sem cair no relativismo niilista tão em voga, coloca de forma simultaneamente crua e subtil em cima da mesa (ou neste caso da tela) uma série de questões cuja relevância se tornou por demais evidente depois de 11 de Setembro de 2001. Reflexo especular dos terroristas que explodiram os aviões nas Torres, Dave é um homem de fé cega e incondicional, nada o parando perante aquilo que considera uma missão divina e a vontade de Deus. E, não fosse a sua determinação guiada pela fé, McLoughlin e Jimeno teriam de facto morrido. Mas Dave é o mesmo homem que acredita ter um Dom divino – ser um Marine, dom esse que não hesitará a por em prática para, nas suas próprias palavras, vingar o que foi feito à América.

Desengane-se quem pense que Stone aproveitou para descansar e colher os louros da emoção barata ou da lágrima fácil. O Stone de World Trade Center é o mesmo Stone libertário independente de sempre, democrata exigente, ciente da essência humana em todas as suas facetas, sentindo a América em todas as suas contradições. A lágrima chega neste filme, mas merecida, ganha com sangue e suor, conduzindo a uma catarse sobre os atentados de há cinco anos, que ainda nenhuma das abordagens ao evento até agora tinha conseguido. A sequência final do salvamento semi-ressureicional, e retrospectivamente todo o filme, acaba por funcionar como um grande hino à vida humana, contrastando com a proposta de cultura de morte que o terrorismo internacional de massas trouxe nesse fatídico dia ao nosso quotidiano.

Um dos filmes incontornáveis de 2006.

A Sobrevivência das Emoções


O que são as emoções humanas? Quais os seus limites representativos, até onde deve o cinema explorá-las sem as dilacerar? A inesperada resposta surge no belíssimo World Trade Center, um regresso à plena forma de Oliver Stone, numa realização soberba que acumula anos de experiência numa sucessão de inspiradíssimos momentos de Cinema.

Este ano, dificilmente seremos confrontados no grande ecrã com algo mais tocante que os rostos de Nicolas Cage e Michael Peña, deixando as suas emoções mais primárias guiá-los no caminho para a sobrevivência - e o feito desta obra maior está precisamente na serenidade e, sobretudo, na verdade com que o habitualmente turbulento realizador nos consegue fazer acreditar na sinceridade das palavras, na simplicidade dos pensamentos, na profundidade dos olhares. Por debaixo do pó e do metal fundido, sob um céu negro de morte, há dois corpos que heroicamente comunicam sem se ver, criando um elo de vida que levará a que sejam dos primeiros a (re)nascer num novo mundo, atenuando o Mal que se erguera naquele fatídico dia de Setembro. Mas World Trade Center não se fica por aí: em paralelo ao drama subterrâneo, a câmara de Stone penetra sobriamente, e como nunca até agora, as artérias familiares, captando instantes presentes e passados que põem em causa a sobrevivência daqueles homens não apenas enquanto indivíduos, mas enquanto entidades de uma família - também aqui a subtileza é extrema, sendo o sofrimento filmado a conta-gotas, sentindo-se quase sem que o pressintamos, em silêncios, respirações, pequenas explosões emocionais, afinal como... na vida real. Em última instância, é a família a verdadeira salvadora, a real religião daqueles dois seres, a razão para que renasçam e sobrevivam num mundo destroçado pela Dor.

Que Stone consiga tudo isto ancorando-se num acontecimento tão falado e até banalizado pela linguagem televisiva confere à obra um carácter fascinante, sendo notável como em nenhum momento ele é utilizado como objecto de manipulação fácil, mas antes como um cenário extraordinariamente imprevisto, reinventado sem artifícios, que confere a esta história uma força emocional única. Sem dúvida, um dos mais genuinamente comoventes objectos de Cinema dos últimos tempos.

wide awake, now...

Quem pensa que viu todos os filmes de M. Night Shyamalan, como se a sua filmografia começasse apenas em «O Sexto Sentido», precisa de descobrir uma pequena pérola injustamente esquecida, de 1998, chamada «Wide Awake». É, na verdade, aqui, não no filme seguinte, que Shyamalan se começa a definir enquanto cineasta. É uma primeira experiência, com uma realização muito menos arrojada, mas adequada ao registo do filme, que demonstra sobretudo a sua capacidade enquanto argumentista, e introduz um tema recorrente na sua filmografia: a .

O tema está presente, de forma mais ou menos explítica, em qualquer filme de Shyamalan, mas num deles sobressai: «Sinais». Tal como neste, qualquer coisa se perdeu, sentindo a personagem principal necessidade de acreditar em algo divino, de forma a evitar a solidão. Por outro lado, contrariamente a «Sinais», não é um padre que duvida da sua fé, mas uma criança de dez anos, que decide procurar Deus após a morte do avô.

O caminho é, como sempre, composto por dúvidas e incertezas, mas adaptadas à visão ingénua e sincera de uma criança, que Shyamalan capta de forma incrivelmente genuína e comovente, pela forma como constrói personagens e relações. Uma das taglines do filme diz-nos: “Meeting your best friend. Finding your favorite teacher. Having your first crush. Remember what it felt like to be...”. E não deixa de ser verdade: os sentimentos que levam o pequeno Joshua a prosseguir na sua busca são de tal forma sinceros, que M. Night Shyamalan permite, de facto, que o espectador se recorde de como é ser criança.

Aqui ficam duas cenas de «Wide Awake», mostrando, na primeira, a esperança de Joshua, e, na segunda, quase o desespero.

21.9.06

Espere... mas não desespere

A convite da Lusomundo e do jornal Público, vários membros deste blogue tentaram ontem pelas 21h30 assistir à exibição de World Trade Center. Tentaram, em vão. Ao que parece os responsáveis da Lusomundo, numa demonstração de profissionalismo e competência, sentaram-se, reuniram e decidiram:1) reservar uma das salas dos cinemas UCI-El Corte Inglés; 2) emitir um número de convites que correspondesse, no mínimo, ao dobro da lotação da sala.

De facto, a sagacidade e previdência da Lusomundo, suportadas num planeamento meticuloso deste evento, jamais fariam prever que o resultado destas medidas fosse terem ficado 150 pessoas em fila à porta do cinema. Pessoas que aguardaram pacientemente até meia hora depois da hora agendada para o inicio da sessão, altura em que o responsável do cinema lhes comunicou que a sala estava cheia e, infelizmente, não havia lugar para mais ninguém. Uma imprevisível situação, obviamente…

Estes 150 privilegiados, não iriam, no entanto, sair de mãos a abanar. Num acto de incrível generosidade, a gerência do UCI e a responsável da Lusomundo, ofereceram às 22h, a estas bafejadas almas, a hipótese de verem um dos outros filmes em cartaz. A essa hora estavam prestes a iniciar-se prometedoras sessões de A Minha Super Ex- Namorada, Garfield 2 ou Eu, Tu e o Emplastro. Para quem não fosse suficientemente lúcido para perceber que estas propostas eram tão interessantes como o último filme de Oliver Stone, não havia necessidade de desesperar. Em alternativa, a gerência do UCI oferecia a possibilidade de ver World Trade Center em qualquer outra data.

Os membros deste blogue agradecem naturalmente à Lusomundo a possibilidade de se deslocarem até ao El Corte Inglés e ficarem durante 40 minutos numa fila para se virem embora. A capacidade de organização e gestão dos profissionais da Lusomundo, muito longe daquela que se observa em países do terceiro mundo como a Nigéria ou o Rwanda, permitiu-nos organizar e aproveitar da melhor maneira o mais escasso dos recursos: o nosso tempo! Obrigado Lusomundo!

Quando um clássico é um clássico


Muitas vezes somos confrontados com clássicos absolutos do cinema, aclamados e recordados durante gerações, que nos deixam profundamente cientes da sua importância e notoriedade na data de estreia mas cujas histórias vão perdendo alguma da sua relevância. Ou pelo menos é um argumento extremamente recorrente utilizado por quem os vê. Um bom filme e uma boa história são sempre inestimáveis independentemente da respectiva idade. The Philadelphia Story é um desses clássicos que ninguém ousará de chamar datado e que terá sempre um lugar de destaque no cinema norte-americano inserido na idade de ouro de Hollywood. As políticas sexuais podem ter mudado (ou será que alteraram-se apenas à superfície) mas o prazer de ver a forma como as personagens deste “pentágono” amoroso interagem é tão inegável quanto a magistralidade da encenação e especialmente do argumento do filme: imparável, inteligente, hilariante e terrivelmente mordaz. E a realização de Cuckor acompanha este ritmo frenético de forma sumptuosa mas contida, deixando as atenções centrarem-se nos actores, os protagonistas naturais desta história adaptada de uma famosa peça de teatro, que revolve em torno de um segundo casamento de uma conhecida e privada socialite, cujo ex-marido tentará arruinar garantindo a presença de repórteres de uma popular revista “cor-de-rosa”. Cary Grant e James Stewart, dois dos mais populares actores de sempre e símbolos de uma época áurea, cruzam-se aqui como antíteses, um alheio aos eventos que acabam por inebriá-lo de uma forma quase juvenil (e que valeu o Óscar de Melhor Actor a Jimmy Stewart) e outro que parece controlar tudo o que decorre, que acabam por reunir-se para formar um retrato de diferentes aspectos da condição masculina, controlados pela presença feminina de Katharine Hepburn, a luz e alma de The Philadelphia Story, uma deusa intocável, com um poder e magnetismo extasiantes que controla em absoluto. A graciosidade desta “imortal” Tracy Lord é algo que só Katharine Hepburn poderia ter atingido, porque a contrastar com esta postura e presença de divindade inalcançável existe o mais minucioso e perfeito timing cómico. E principalmente uma faceta frágil, vulnerável e inesperadamente comovente que fazem desta interpretação uma das mais fulgurantes e marcantes de toda a sua carreira, um papel que poderia ter ido parar a outra actriz, numa altura em que Hepburn era considerada “box-office poison”, não fosse a imposição de Howard Hughes aquando da compra dos direitos cinematográficos para que fosse ela mesma a interpretar esta personagem que já era sua na Broadway. Agora é impossível imaginar The Philadelphia Story sem Hepburn, quase como se não fizesse sentido existir de todo. Assim, na sua plenitude, é uma obra-prima da comédia do cinema clássico que persistirá eternamente.




20.9.06

Criterion em Dezembro

Para Dezembro a Criterion Collection reserva-nos edições de Symbiopsychotaxiplasm de William Greaves e o documentario Grey Gardens (reeditado, agora numa edição de 2 discos) de David e Albert Maysles, Ellen Hovde, Muffie Meyer e Susan Froemke. Para mais detalhes sobre as edições consultar os links.
Symbiopsychotaxiplasm
Grey Gardens

Voltar ao mesmo




Volver, de Pedro Almodóvar, recupera algum do seu, a espaços, fascinante sentido de humor sobre os reflexos instalados no tecido social, mas também algumas das suas limitações enquanto dramaturgo, convocando frissons melodramáticos que nunca têm hipótese de serem mais que meras caricaturas sociais e familiares limitadas à sua própria inconsequência. Em todo caso, o trabalho dos actores é, de facto, uma mais-valia que importa valorizar, concretamente a surpreendente composição de Penélope Cruz no papel de uma mãe que se vê colocada numa situação (a morte do marido) que começa por ser fulgurante do ponto de vista dramático mas que, como tudo o resto no filme, acaba por se transformar em mais uma nota de rodapé referida pontualmente para criar uma espécie de teia narrativa, tão desconcertante quanto caricatural. Carmen Maura, no papel da fantasmagórica mãe introduz, de facto, um subtil elemento dramático à acção: a presença de uma entidade materna cuja identidade é, de facto, um dos poucos lugares dramáticos para onde Volver ocasionalmente converge.
O drama e a comédia voltam a rimar neste filme, embora não de forma tão equilibrada como no magnífico Fala com Ela (onde, de facto, a comédia era também uma forma dramática). Há algo de inconsequente em toda a volúpia dramática de Volver, uma espécie de frustração desconcertante que sentimos na câmara de Almodóvar, atenta a detalhes afectivos que, em boa verdade, não existem. Resta a corrosão e eficácia do seu sentido de humor na composição de uma sátira familiar, por diversas vezes enfraquecida por um argumento demasiado distante das suas personagens, troçando-as como se fossem restos de uma piada ou de uma caricatura bem desenhada. Poucos ecos vão ficar, mas Volver é, para todos os efeitos, um interessantíssimo reencontro com Pedro Almodóvar.

19.9.06

Profunda desilusão...

Uma notinha apenas para desabafar a minha infeliz desilusão com o novo filme de M. Night Shyamalan. «Lady in the Water» (em português: «A Senhora da Água») mantém a sua serenidade, a sua dialéctica singular na mudança de escalas e planos, a sua contagiante fé nas pessoas... mas algo se perdeu. É provavelmente o seu filme mais ambicioso, o seu grande ensaio sobre a inspiração e a arte que perdemos, recuperamos e reinventamos. Falta nele, precisamente, o que mais gostamos no seu cinema: uma paixão irredutível pela densidade e riqueza dramática das suas personagens, bem como dos destinos que para si descobrem. Ficam as boas intenções e a sensação que há terreno suficiente neste filme para todos habitarmos com o radicalismo da nossa verdade. Filme para dividir? Sem dúvida, o cinema também é feito de filmes assim.

98 Octanas e a Disponibilidade do Olhar


Jorge Leitão Ramos (crítico do Expresso) termina a sua (excelente) crítica a «98 Octanas» (o novo filme de Fernando Lopes, estreado na passada Quinta-Feira) prognosticando que apenas alguns «happy few» o degustarão. A explicação vem antes: «atravessamos uma época em que poucos sabem a disponibilidade do olhar» e este é um filme que se «compraz na excelência de cada plano».

Eu sou um dos tais «happy few» a que o crítico se refere. Não porque considere «98 Octanas» um grande filme (porque não é). Mas porque consegui ver nele, ainda que a espaços, a manifestação de um cinema livre, ao sabor do vento e da estrada, que se contenta com a beleza efémera dos planos e dos gestos. Ou, se se preferir, um cinema que não vive de histórias ou de personagens, mas de imagens e de momentos. Nesse contexto, «98 Octanas» surge como um objecto que convoca, precisamente, a disponibilidade do nosso olhar.

«98 Octanas» não nos dá verdadeiramente uma história para seguir, nem personagens para conhecer. Trata-se, afinal, de um filme sobre dois seres errantes, sozinhos e despedaçados, que são estranhos um ao outro e a nós. «98 Octanas» é de um filme que parte do nada para chegar ao nada. Um nada que é longe (da vista, do coração, do mundo, das pessoas) – porque afinal o «mundo são eles» –, mas que fica perto. Muito perto. Mas o filme acaba antes de lá chegar. Porque para aqueles dois seres solitários só fica perto porque o espectador não os poderá acompanhar!

18.9.06

Après Vous...


Uma bela comédia romântica francesa, estreada numa altura em que poucos bons filmes têm chegado às salas de cinema. Afastando-se das narrativas e gags mais banais que muitas vezes abundam os filmes do género, a narrativa de Après Vous acaba por ser muito mais do que uma sequência de vários grandes gags. Trata-se, na verdade, de uma exemplar construção de personagens adequada ao registo divertido do filme, sem se querer aventurar por pretensões dramáticas que não conseguiria alcançar, mas nem por isso deixando de se preocupar em desenvolver as suas personagens, de forma a tornar credível o exagero de certas atitudes e situações que se enquadram no objectivo cómico do filme. Assim, a duração ligeiramente exagerada, que acaba por prejudicar um pouco o filme na sua recta final, é compensada pela inteligência e originalidade narrativa e pela qualidade do elenco, onde surge Daniel Auteuil com uma das melhores interpretações de comédia do ano. E, já agora, também o próprio filme é - pelo menos até ao momento - uma das melhores comédias do ano.